GESTOS PERIGOSOS

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O HOMEM QUE CONTAVA DINHEIRO


Conheci um homem, há alguns anos, que destinou sua vida a juntar dinheiro. Segundo parentes, desde de pequeno Justino guardava num cofrinho todos os tostões que conseguisse. Não os gastava, nem por necessidades. Não comia doces e outras guloseimas apreciadas pela criançada. Engolia a água na boca, pois sua satisfação se encerrava na economia que fizera ao não gastar com gulodices. Remédios? Comprava-os quando estritamente precisos, sempre com a ajuda de alguém. Queixava-se do mal que o afligia e dos poucos trocados que tinha para adquirir os medicamentos.
Jamais contava aos outros quanto tinha guardado. Segredo absoluto. Vestia-se mal, alimentava-se mal, enfim, vivia às custas de aparências próximas à miséria. Pobreza camuflada. E todos ao seu redor nutriam a mais profunda piedade do Justino, o que, vez ou outra, rendia-lhe doações de todos os tipos. Roupas, calçados, alimentos e até dinheiro, o que mais lhe interessava. Emprego? Trabalhava numa firma importadora como ajudante geral. Não estudou o quanto devia, para economizar. E do cofrinho da infância, Justino rendeu-se a uma conta bancária para guardar suas economias.
Sua residência, uma casa alugada na periferia da cidade, tinha apenas o suficiente para ele sobreviver. Um fogão, comprado de segunda mão. Uma geladeira muito antiga. Uma cadeira. Uma cama e um pequeno guarda-roupa, no qual ele acomodava roupas e mantimentos. Nada mais. Não precisava de muitas coisas, assim pensava, pois jamais recebeu ou receberia visitas. Podendo sempre economizar, tudo estava bem para Justino.
Uma das exigências de Justino para si mesmo era nunca se apaixonar. Mulher nenhuma haveria de dividir com ele seus bens monetários. Sempre que precisava aliviar-se nas necessidades fisiológicas, recorria ao prazer pago. E sempre o mais barato, para economizar. Jamais usou preservativos, uma vez que, no seu entender, era muito caro para apenas um minuto de satisfação. Desse modo, enchendo sua conta bancária de tostões e mais tostões, Justino considerava-se uma pessoa inteligente. Ia vivendo, embora à margem do mínimo conforto. O mais importante na vida, segundo a filosofia de Justino, era contar dinheiro. Como ele o fazia todas as noites, antes de dormir. Contar dinheiro era sua oração preferida. Adormecia no embalo do tilintar das moedas.
- Estou esperando um filho teu. – anunciou-lhe uma das prostitutas baratas da sua agenda de prazeres. – E eu não tenho como cuidar do menino.
Justino podia ser o maior avaro do mundo, mas irresponsável jamais. Sem atinar com as malandragens do submundo, registrou em seu nome o garoto, imediatamente ao seu nascimento: Justinho Júnior. Sem muito esforço, a mãe conseguiu o objetivo. Juntou seus trapos e mudou-se para a modesta casa do nosso contador de dinheiro. E começaram as exigências: novos móveis, roupas novas, geladeira fost free... Tudo em nome da boa educação para o Júnior. Aos poucos, Justino deixou de contar moedas todas as noites. Não sobrava muito para tanto. E teve que mexer na conta bancária, coisa que nunca o fizera desde sua abertura. Aos poucos... Teve um enfarto e morreu. A mãe do Júnior transformou-se numa dama. O filho abriu um cabaré. Mas, aos poucos, tudo voltou à forma antiga. E, aos poucos, a conta bancária do Justino cravou-se no déficit. Acabou o dinheiro... Acabou. Como o Justino, hoje acomodado num túmulo para indigentes.

sábado, 3 de outubro de 2009

A SEDUÇÃO DA CUECA AZUL


O que sabemos é que ele nasceu em Mitu, Colômbia. Como chegou à cidade de Tefé, no Brasil, ninguém sabe. Ele nunca falou sobre esse assunto. Deixava todos na dúvida entre fuga ou aventura. Veio para nossa terra já moço, com certo grau de estudos, o que não lhe dava à classe dos matutos. Trouxe poucas roupas numa mala surrada e coberta de barro, o que indicava caminhadas a pé pela mata amazônica antes de desembarcar em Tefé.
- Como é seu nome? – perguntou-lhe um posseiro que tinha uns servicinhos pro moço.
- Antonio. – respondeu-lhe de forma lacônica.
- Pois já vou dizendo pra você que não fui com a sua cara. Você tem cara de índio e eu não gosto dessa raça. Mas o serviço é seu.
Antonio, o colombiano, ficou em Tefé por três anos. Depois, pegando caronas, partiu para Porto Velho, em Rondônia. Já se sentia à vontade entre nossos patrícios. Conseguiu emprego numa empresa de transporte como ajudante de motorista. Trabalhava o dia todo e à noite passeava pelas ruas em busca de diversões. Algum tipo de jogo, caminhadas, danceterias, mulheres... E nesse particular, mulheres, Antonio não tinha muita sorte. Parecia não agradar ninguém, nem as raparigas de vida fácil.
- Estou na precisão. A moça está disponível? – argumentava Antonio. E na afirmativa da mulher, levava-a para algum hotel barato.
- Cueca vermelha? Que luxo! – ironizava a prostituta, o que na desmoralização apagava todo o ânimo do pobre Antonio.
Mais três anos fora da cidade natal e Antonio desceu pelo mapa do Brasil. Passou por Cuiabá – Mato Grosso, depois Campo Grande no Mato Grosso do Sul e finalmente desembarcou em Cubatão, no Estado de São Paulo. Alguém havia lhe dito que essa cidade estava prosperando industrialmente e que lá emprego seria fácil. Não foi bem assim. Suportou três meses de intensas procuras sem êxito. Sua sorte é que encontrou um colombiano que lhe ofereceu ajuda.
- Você mora comigo até arrumar trabalho. Não precisa pagar nada. Depois a gente se entende. – disse Héctor ao já amigo Antonio.
Antonio visitou a Refinaria Presidente Bernardes, a Cosipa, a Rhodia, Brasileira de Estireno... Enfim, andou pelas salas de entrevista das grandes indústrias da cidade. Nada! Desanimava quando, numa tarde cinzenta, Héctor anunciou com largo sorriso colombiano:
- Estás empregado, amigo!
Antônio não dormiu naquela noite. Ansiedade e nervosismo alimentaram a insônia. Às cinco da manhã, levantou-se e tomou demorado banho. Vestiu-se com a melhor roupa e empapou-se com o perfume do amigo Héctor. Às sete horas em ponto estava no hall de entrada da empresa Passo Largo de Transportes.
- Bom dia. Antonio o seu nome, não? Sou a proprietária desta companhia e já vou adiantando: não gosto de intimidades, não fui com a sua cara de índio, mas o trabalho é seu.
Essas palavras Antônio já tinha ouvido há alguns anos. Não lhe incomodavam. O problema maior era a proprietária Marisa. Mulher maravilhosa. Corpo escultural. Ruiva natural. Pobre Antonio, há longo tempo sem tocar num corpo feminino...
Passados alguns meses, a proprietária Marisa deu a Antonio uma camiseta de presente. No aniversário dele.
- Quero que experimente a camiseta ainda hoje, seu Antonio. Se não servir, eu troco.
Assim que Marisa saiu da sala, Antonio fechou a porta e rapidamente pôs-se a vestir a camiseta. Para ajeitá-la melhor no corpo, arriou as calças e...
- Caso o senhor... – Marisa abriu a porta surpreendendo o Antonio com as calças abaixadas. E prosseguiu: - Caso o senhor não goste da estampa, me avise. E fechou a porta com rispidez. Uma semana passou sem que Marisa tocasse no assunto. Nem Antonio. Temia perder o emprego. Até que...
- Bonita aquela sua cueca azul, seu Antonio. – disse-lhe ela com sensualismo.
- Gostou? Comprei meia dúzia delas. Hoje, por exemplo, estou vestindo uma... Quer ver? – arriscou o Antonio. Ou tudo ou nada.
- O senhor me mostra, seu Antonio? – Marisa derrubava todas as suas guardas.
- É pra já, dona Marisa!
Dizem que a Marisa não suportou ver Antonio com as calças arriadas mostrando a tal cueca azul. E que se atirou sobre ele sufocando-o com um beijo luxuriante e demorado. E que a partir desse momento tudo mudou na vida do colombiano. Ficou bem de vida como sócio na empresa Passo Largo. É considerado, até hoje, como o maior colecionador de cuecas azuis do planeta. Acho que até está no Guinness. Seria o caso de se conferir.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

UM MINUTINHO....


Mal estar na altura do estômago. Queimação. Gastrite? Talvez a salada com muito vinagre... Não, gastrite não era. Uma dor misturada com ansiedade irrompia no peito. Súbita. E aumentava assustadoramente. A ponto de espalhar-se pelo tórax e abraçar as costas. Pensou em tomar alguma coisa para conter a dor. Enfarto? Náuseas, tonteiras. Pôs-se de pé, rápido. Lembrou-se de um amigo que teve a mesma coisa. Mas sobreviveu pelo atendimento rápido do seu médico. E de um caso que lhe foi contado na hora do almoço. Um sujeito que teve dores horríveis no peito, foi socorrido e nada de grave. Gases pressionavam o abdômen e a dor apareceu. No caso dele, a coisa era grave. A urgência fazia-se urgente. Mal e mal caminhou até o telefone. Na agenda, o número do seu cardiologista. Com extrema dificuldade, mal podendo respirar, discou para o consultório do médico. E, graças a Deus, a recepcionista atendeu...
- Um minutinho... – disse a moça e soltou música eletrônica de espera.
Fim de semana prolongado. Loucura de êxodo. Todo mundo deixa a sua cidade para saborear visitas. Rever parentes, amigos, lugares... Malas e bolsas coloridas corriam de um lado para outro em busca do transporte. Falatório de terminal rodoviário, risos de aventuras... Tudo muito gostoso, mas o último ônibus da noite estava de partida. Era preciso ser rápido para conseguir embarcar. Caso contrário, teria de ficar até às 7 da manhã quando sairia o primeiro do outro dia. A lenta fila gerava preocupação. Felizmente, chegou-lhe a vez. O tempo certo de comprar a passagem, correr e embarcar no ônibus.
- Um minutinho... – disse a moça e deixou o guichê rumo ao toalete.
Fila de banco todo mundo sabe como é. Gigantesca quase sempre. Exercício de paciência. As fisionomias mostram a insatisfação da demora. Mas, o que fazer? Último dia para pagamento do boleto. Se deixasse para pagar depois, a multa desencorajaria qualquer bolso. O jeito era manter-se ali e aguardar a sua vez. Aproveitar e ler as propagandas do banco. Se você empregar tanto, pode ser sorteado com um carro todos os dias. Ou uma casa por mês... Dentro de um banco, você tem mil oportunidades para comprar a felicidade, não é mesmo? Entretanto, o problema surgia através da dor de barriga que anunciava necessidades fisiológicas. Faltavam somente três pessoas. Com um pouco de sorte, daria tempo de pagar a conta e voar para o primeiro banheiro à disposição. E, mais uma vez graças a Deus, a sorte o amparou. Chegou ao caixa com muita fé.
- Um minutinho... – disse o moço e retirou-se para atender o telefone.
Quer mais? Ele estava com 85. Ela, 80. Dali a três dias completariam 50 de casados. Bodas de ouro. Uma história feliz de convivência feliz. Do dia-a-dia em comunhão. Amor infinito. A comemoração deveria ser primorosa. Como nos velhos tempos. O problema era que há mais de dois anos ele não tinha ereção. Em tempo algum. Então, resolveu procurar o seu geriatra. Pediu ao médico o milagre para a consagração da festa. Viagra não resolveria a questão. Mas o doutor, experiente nas vicissitudes da idade, receitou-lhe uma fórmula para ser manipulada. Remédio porrete, mas que tinha efeitos efêmeros. O ato deveria acontecer tão logo a coisa começasse a acontecer. E chegou o dia, a hora. Beijos daqui, abraços dali... Um carinho atrás do outro... Não contou nada a ela. Escondido, tomou o remédio. A falsa imagem de virilidade. De repente, a tal fórmula mostrou o porquê da sua eficiência. E ele não poderia demorar. Agarrou-se nela como um garanhão em pleno cio. Ela, devido a pouca esperança, nem havia tomado banho. Com certa dificuldade, soltou-se dele...
- Um minutinho... – e abandonou-o na cama rumo ao chuveiro.
Ah, mas o fato mais marcante, o exemplo mais positivo, ainda estou por contar. Esse vai deixar cada leitor vibrante de emoção. Algo jamais visto, jamais pensado. Querem conhecer? Ótimo! Mas antes...
- Um minutinho...

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Moleskine, você conhece?



Eu faço anotações em pedaços de papel. Confesso, sou um tanto desorganizado para registrar coisas e fatos do dia-a-dia. Manter um diário, nunca! Nem tentei em toda a vida. Entretanto, há quem dedique parte do tempo de cada dia para anotar a sua história de cada dia. Como ganhar o pão, aquele de cada dia.
Bruce Chatwin (1940 – 1989), escritor inglês, viajava muito. Colhia, nessas jornadas, fatos históricos dos lugares por onde passava. Entrevistou muitas personalidades, que colaboravam para sua coleção de histórias. Esse acervo cultivado ao longo de alguns anos, ao longo das viagens, acabou fornecendo material para dois livros: O Rastro dos Cantos, que fala sobre música aborígine, e In Patagonia, uma espécie de relatório sobre a selvagem América do Sul.
Na verdade, Bruce era um metódico colecionador de histórias e relatos de boa parte do mundo. Tinha o hábito de investigar, de pesquisar e de registrar tudo num peculiar livreto de anotações. Moleskine é o nome desse livreto. Pequeno, muito prático, com folhas duráveis bem presas e amarradas por um elástico. Por seu porte pequeno, pode ser levado nos bolsos do casaco ou do paletó, o que o torna companheiro dos artistas em geral. É claro que quando Bruce o conheceu, apaixonando-se por ele, esse livreto já era um clássico.
Moleskine, na penumbra da história, gerou lendas em torno de si. Há citações de que artistas das mais variadas classes utilizavam essa espécie de caderninho para anotarem a evolução de suas produções. É possível que Ernest Hemingway (1899 – 1961), Pablo Picasso (1881 – 1973), Henri Matisse (1869 – 1954) tenham possuído moleskines para suas anotações, embora nada comprovado. Dizem até que Hemingway tenha escrito suas crônicas de Paris, nos anos 20, quando freqüentava vários cafés daquela cidade. Conta-nos algumas lendas que ele tirava seu moleskine e um lápis do bolso e começava a escrever naquelas páginas tão inspiradoras. Confirmado, Vincent Van Gogh (1853 – 1890) usou esse tipo de livreto, pois em 2002, em Amsterdam, seus moleskines foram expostos à visitação pública.
Durante dois séculos o moleskine foi o caderno legendário de intelectuais e de viajantes. Sua produção foi interrompida em 1986 com a morte do seu fabricante. Mas, com a iniciativa da produtora italiana de marca Modo & Modo, o charmoso caderninho voltou às prateleiras de vendas logo no início do nosso século. É claro que hoje, com a Informática ao nosso dispor, escrever a mão é coisa do passado. O moleskine é "um sopro de romantismo e descrição". Mas não duvidem se, em médio prazo, estaremos vendo nas mãos de artistas e intelectuais o famoso moleskine, num resgate interessante dessa moda européia, a despeito da atual tecnologia.
Roberto Villani

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A LENDA DO BAILE DE NOIVADO


A Rua Principal foi tomada por nevoeiro londrino de Jack. Mal se podiam ver os paralelepípedos incrustados no chão a título de leito carroçável. Início de noite. Ninguém nas redondezas. Alguns vislumbres de luz surgiam de algumas janelas ao longo da via. Cenário lúgubre. Descolorido. Destacavam-se, tênues, as auras nas luminárias a gás penduradas nos postes de ferro. Ninguém a vista. Nenhum animal por perto. Um pio de ave noturna propagou-se discreto no ar.
Algumas pessoas saíram à porta do casario amarelo. Vestidas a rigor, as moças esboçavam alegria incontida. Os rapazes, em seus vistosos ternos, animavam-se entre expectativa e sorrisos femininos. Quebravam, com a euforia, o ambiente soturno daquele cenário. Todos fixavam o olhar à esquerda da via. Esperavam alguém muito importante.
Súbito, ruídos vindos da esquerda aliavam-se a surda algazarra dos jovens à porta. E rasgavam o silêncio do lugar. Tropel de cavalos anunciava a aproximação da carruagem tão esperada. A parelha eqüina, imponente, parou diante de todos. Muitos se aproximaram do veículo. E aplaudiram o casal Marcel e Marguerite que deixavam o coche. Beijos, abraços, cumprimentos de mãos fortes, palmas... A turba acompanhou o jovem casal para o interior da casa amarela. E não notaram, na saída da carruagem, um vulto oculto nas sombras da noite, que observava cada movimento na calçada à frente.
A sala principal da bela casa fora construída com suntuosidade. Iluminada por lindíssimos candelabros sabiamente colocados sobre colunas à encosta das paredes. Entremeados com sofás e poltronas estilo Luis XVI, o que oferecia aspecto clássico e rico ao ambiente. Nas paredes, além de vidraças e portas de imensa riqueza, grandes pinturas retratando homens e mulheres da nobreza formavam majestoso porta-retrato familiar. Num dos cantos da sala, alguns músicos – instrumentos de corda, aliciavam casais para o baile. Petiscos e licores passavam em bandejas de prata nas mãos de garçons trajados com uniforme de gala. A alegria era esfuziante. O bem estar, instalado em cada coração presente, fazia do amor a força mestra do calor humano daqueles momentos.
- Um viva aos noivos Marcel e Marguerite! – alguém se manifestou. A música deu trégua, os casais formaram um círculo em torno dos noivos e algumas palavras, após o “viva!”, foram ditas pelos jovens casadoiros e por convidados.
- Eu agradeço todo o carinho que vocês nos oferecem, meus amigos. Este baile de noivado haverá de se perpetuar pelos séculos em nome do nosso indestrutível amor. – disse Marcel beijando Marguerite, sob os aplausos efusivos da platéia em círculo.
O tal vulto, até então escondido na despreocupação dos presentes, invadiu o ambiente enquanto todos se reuniam no centro da sala. Ninguém o viu esgueirar-se ao longo das paredes. Trajava chapéu e pesada capa preta, que lhe ocultavam o rosto e o corpo. Encostou-se próximo aos músicos, sem ser visto por ninguém; parecia esperar momento oportuno para agir. Dali pode ver e ouvir veementes discursos, todos de exaltação aos noivos e àquela memorável ocasião.
- Que retorne a música e a dança! – comandou Marcel. E o baile prosseguiu.
Após algum tempo, o tal homem aflorou de seu sinistro comportamento e colocou-se diante dos músicos.
- Um momento! – disse em tom ríspido. E continuou sob o espanto de todos, agora postados diante de si. – Este noivado não tem sentido. Ela declarava amor por mim por toda a vida. – Um dos presentes quis investir contra o homem, mas Marcel o impediu. – Esse canalha, Marcel, a seduziu com sua riqueza, com sua nobreza... Ele a roubou de mim! – concluiu e, enfurecido, sacou da cintura a espada oculta pela capa e avançou insano sobre Marcel. O horror instalou-se na sala. E a espada transpassou o peito do jovem noivo. Enquanto muitos tentavam socorrer Marcel, o assassino desaparecia na escuridão da Rua Principal.
A manhã chegou com a dissipação do nevoeiro pelo sol. A Rua Principal atualizou-se, mostrando prédios de apartamentos e edifícios empresariais. O asfalto lotava-se de carros, ônibus, caminhões... Trânsito pesado e complicado. Num apartamento do prédio construído no mesmo lugar do casario amarelo, algumas pessoas aglomeravam-se em seus cômodos. Legistas, policiais, parentes e jornalistas observavam atentos o corpo inanimado de um jovem caído no centro da sala.
- Sabe o nome dele? – perguntou um repórter ao outro.
- Marcel, eu acho.
- Como ele morreu, você sabe?
- O legista disse que foi assassinado. Uma longa lâmina, que eles ainda não identificaram, transpassou o peito do coitado.
- Alguém suspeito?
- Ninguém...
Uma lenda: o destino cruel de um jovem e o ciúme descontrolado de um amante inconformado. A cada cem anos, no dia e no mês da ocorrência, um baile de noivado é realizado nas trevas do inconcebível. Elaborado pela magia da imaginação humana. E alguém chamado Marcel morre, interrompendo um romance perpetuado pelos séculos em nome de indestrutível amor.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

POEMA DE UM LOUCO


Rodo pelo salão das minhas quimeras. Acendo as luzes da minha imaginação. Olho-me no espelho da ilusão. Vejo-me radiante, vestido com traje a rigor. Um tango espalha sons pelos quatro cantos. Ecoa pelas paredes incandescentes da minha euforia íntima. Quero, neste momento, dançar um grande sonho de amor.
Clamo aos meus sentidos as sensações próprias dos meus objetivos. O ritmo é tão quente que não consigo parar os meus pés. Minhas pernas. Esboço, então, os primeiros passos, ainda solitários. Minha mente extravasa emoções tantas que sinto vontade de rir e de chorar enquanto imagens transpassam minha pele, minha carne, minh´alma. Estendo a mão ao nada, a ninguém. Impaciente, rogo aos deuses da esperança a chance de encontrar-me. Confesso que estou um tanto perdido nesta casa das memórias. Cabeça de um corpo que ainda não despertou para o delírio.
Meus olhos, antes transparentes, põem-se insondáveis como defesa plena da minha incredulidade ao sonhar, de amar. Por onde andaria, neste momento, o meu coração? No meu peito já não bate, pois se acomodou no âmago daquela que o roubou de mim. Triste fim de um sonhador romântico que jaz aos pés do fracasso.
Mas eis que, num vislumbre da mente que desperta, num repente mágico de solução irreal, minha dama surge como deusa sempre esperada. Estende-me as mãos e num sorriso devolve-me por momentos a graça da vida. Trago-a de encontro a mim e, ao contato de seu corpo inteiro, renasce em minhas entranhas o vigor de jovens tempos. Quero embeber-me do perfume que exala das rosas incrustadas em seus cabelos. Quero compor os mais lindos poemas que, etéreos, transformam em luzes as palavras do meu platônico amor. Sorvo em seus lábios o mel que me põe louco. Que me fez louco. Que me faz louco.
Entrelaço com as minhas as longas pernas da minha escultura infinita. Giro ao longo de sua cintura. Minha mão corre por entre suas curvas, pleno prazer de tê-la minha, somente minha. O calor de sua pele aquece meus pensamentos antes frios, sombrios. Bebo o néctar da gratidão. O tango arrasta-me à fantasia do êxtase. A imagem dela apaga-me o pranto contido. Sou feliz pela eternidade daquele instante.
Contornos ritmados, dançamos ao sabor de algo que nunca acabará. É assim que desejo. É assim que me sinto neste imenso salão de quimeras. É assim que me exponho ao medo de que tudo termine como sempre. O fim que me leva à realidade. Realidade que me consome a esperança de tê-la de volta. Insanidade... Quando o tango parar, acabar... Quando tudo se desfizer, inconseqüente desfecho de um poema de amor escrito numa página do diário de um louco...

domingo, 30 de agosto de 2009

MOMENTOS ROMÂNTICOS

Amor, carinho, dedicação, palavras que, por si só, contam grandes histórias. Palavras apaixonadas, canções românticas, lições fraternas que se prolongam pela vida. Quem ainda não amou? Quem nunca se dispôs a enveredar seus passos nos caminhos de outrem? Se criança, seguir nos rastros dos pais. Se jovem, dançar no compasso de paixões adolescentes. Se maduros, acampar no carinho de alguém muito especial. “Infeliz daquele que passou pela vida sem sentir dor de amor”, alguém já disse.
O romantismo, não o literário, mas aquele que existe dentro do ser humano, parece-me mais uma espécie em extinção. Marcante ainda nas músicas sertanejas e nas chamadas bregas, e, principalmente, na poesia, o verdadeiro sentimento romântico resiste no comportamento de algumas pessoas, não como modismo, mas como índole. Flores, jantar à luz de velas, abraços e beijos sob o luar (e inspirados na luz da lua), poemas dedicados etc, ainda se vê por aí, já não tão freqüentes. Observamos essas coisas como jóias raras de um tempo antigo. E, às vezes nostálgicos, ainda somos obrigados a ouvir chalaças, como “Isso já era!”, “Fora de moda!”, “Dá licença, mas tô fora!”... É uma pena, pois na época das serenatas, quando pegar na mão da namorada era verdadeira conquista masculina, os casais podiam passear pelas calçadas do mundo sem pavor do assédio dos marginais. Os grandes artífices do medo faziam-se os pais das moças, no controle vigoroso da honra de suas filhas casadoiras.
Eu sempre percorro, pela Internet, páginas românticas dedicadas à poesia. Como a Home Page da poetisa Fátima Irene (www.fatimairene.com), que, numa mistura mágica de imagem, som e palavras, transporta românticos ao cantinho aconchegante dos poemas de amor, de carinho, de dedicação.
Conheço um lugar em Descalvado que considero propício a momentos românticos. Refiro-me à Churrascaria Cabana, ali na Praça da Matriz. Há muitos anos freqüento esse restaurante, com minha família. Lembro-me do tempo no qual o atencioso José (o Zé) servia nossa mesa com Filé à Parmezziana e Filé à Cubana, pratos preferidos por todos nós. Tempos românticos aqueles, registrados nos espaços do Cabana, supervisionados pelo Pinho, e gravados em minha memória saudosista. Até hoje, toda vez que entro nesse local, revendo, lá, o Pinho e o Zé pelo salão, renasce a saudade de dias inesquecíveis marcados pelo sabor do filé à cubana e pelas graças do saudoso Joaquim, jovem ator do meu teatro TERV daquele tempo. Prova disso é este teimoso nó em minha garganta, que embargaria minha voz se tivesse que narrar esta história, mas dá forças e inspiração às minhas mãos neste teclado que, embora longe do romantismo das máquinas de escrever, existe para que eu possa transportar a todos vocês a emoção que me envolve agora, enquanto escrevo.
Noutro dia, um domingo, voltamos ao Cabana, eu e Rosária. Preparamos nossos pratos e sentamos. E mais uma vez tivemos o prazer da presença simpática do Zé:
- Uma cerveja? – perguntou, apertando-me a mão.
Passados alguns minutos, um idoso casal entrou no salão do restaurante. Cabelos totalmente brancos, andar compassado, personagens de estória antiga, seres que se apresentam de passagem aos nossos rumos para encantar nossas vidas. Eu e minha esposa os acompanhamos com olhar disfarçado. Ele chegou primeiro à mesa e, num ato de autêntico romantismo, puxou a cadeira, cavalheiro hoje somente em histórias de autores imortais. Ela pousou seu prato sobre a mesa e, cadeira ajeitada por ele, sentou-se como verdadeira senhora de alta corte. Ele, gestos elegantes, com um leve sorriso, marca indelével de amor que nunca acaba, voltou-se à cadeira oposta e, então, almoçaram. Não sabemos os nomes deles. Mas podemos afirmar que, naquele momento romântico, eles nos ofereceram o encanto de imagens fascinantes, gravadas somente na lembrança daqueles que verdadeiramente podem dizer “te amo!” pela vida toda.
Saímos do Cabana de braço dado. Nossos momentos, por instantes, foram acariciados por pensamentos poéticos, por emoções há muito não vividas. Entramos no carro e rumamos à cidade de Santa Rita do Passa Quatro, passear, jogar conversa fora e tomar sorvete no Palácio do Sorvete daquela cidade. Pode ser coisa brega, fora de moda, mas com o gosto gostoso do verdadeiro romance. Como antigamente fazíamos. Lições que nos ensinaram a fórmula simples para sermos felizes.