GESTOS PERIGOSOS

sábado, 28 de fevereiro de 2009

VENTIS LOQUERIS

“Falas aos ventos” é o título desta crônica. Em latim. Confesso que descobri essa frase em algum lugar da Internet. A princípio, não lhe dei a devida importância. Depois, considerando melhor, resolvi colocar meus pensamentos a serviço de reflexões a respeito. Conheci pessoas que se arrepiavam ao ouvir alguma coisa pronunciada em latim. Diziam que o latim era o idioma das bruxas, dos bruxos. Dizem que São Cipriano, nas suas receitas de magia, orava em latim. Mas esse idioma também serviu e serve aos clérigos, aos místicos, aos eruditos. Na verdade, latim é língua de mistérios, de mundos mágicos. E não serei eu quem vai dizer o contrário. Cruz credo! Mas não vem ao caso, neste momento. O que me importa é contar minha história desta semana.
Carlo, como conheciam o italiano solitário. Atarracado, nariz adunco, voz cavernosa, soturno, distribuía olhares misteriosos à sua volta. As crianças, a maioria delas, assustavam-se ao vê-lo por perto. Algumas mulheres diziam-no parceiro do diabo, mais uma vez cruz credo! Não tinha amigos. Nem esposa nem familiares. Vivia sozinho mesmo. Ermitão, quase. De casa para o trabalho e vice-versa. Tomava café numa, digamos, padaria perto da sua casa. Almoçava no serviço. E jantava... Por mais que os curiosos investigassem, não havia viva alma que soubesse falar algo dele. Carlo, sim, era uma imensa incógnita.
O que mais aguçava a curiosidade do povo do lugarejo, uma vila de origem inglesa colocada no alto da serra pelas mãos do Senhor (conforme afirmavam seus habitantes), era a rotina noturna do Carlo. Ao anoitecer, ele se encaminhava lentamente em direção ao topo da montanha e lá se deixava ficar em meditação, às vezes por horas. Com chuva ou com luz de lua. Sentado à imagem ioga. Olhos fechados, silêncio absoluto quebrado pelos pequenos ruídos comuns aos lugares ermos. Mais tarde, erguia-se e falava coisas obscuras (para nós) aos ouvidos distantes. Com tapas nas calças, limpava a poeira e retornava à sua casa, com passos lentos.
Com as freqüentes conversas maldosas sobre o Carlo, cresciam os créditos sobre suas ligações com o demônio. Naquele lugar não havia lugar para pessoas assim, comprometidas com o mal. Reuniram-se alguns homens e combinaram. Ficariam à espreita, no alto da montanha, para ouvirem, bem de perto, cada palavra pronunciada pelo Carlo. Assim, saberiam que tipo de compromisso satânico Carlo cumpria.
Anoitecia e o italiano Carlo iniciava sua áspera caminhada. Gastava hora inteira para ir, um pouco menos para o retorno. Acredito que cansava, mas ele enfrentava o sacrifício com galhardia, com coragem. Aproximava-se do topo desconhecendo que seguiam seus passos, sorrateiros invasores de sua privacidade. Carlo meditou, falou, limpou o pó de suas calças e pôs-se de volta.
A noite foi longa para os investigadores. Discutiram, criaram propostas, sugeriram, negaram, idéias confusas, decisões atabalhoadas...
- Que droga de idioma fala o homem?
- Latim! Eu não entendi nada, mas sei que é latim por que eu estudei um pouco...
Na realidade, ninguém sabia o que Carlo falava todas as noites no topo da montanha. E se era latim o idioma da conversa, o Carlo falava com Deus ou com o Diabo. E aquela turba resolveu arrancar a verdade à força, via seqüestro do pobre italiano.
- Eu não quero nada com o diabo, acreditem. E também não falo com Deus. Não posso. – afirmava o italiano, amarrado a uma cadeira e rodeado de inquisidores.
- Podemos saber com quem você fala? Em latim?
- Com o vento. Ele carrega minhas palavras para a Itália, aos ouvidos da mulher que eu amo. Por ela, abandonei minha missão religiosa. Deixei a batina. Fui até excomungado, proibido de falar com Deus. Infelizmente, não posso mais voltar à minha pátria...
- É difícil acreditarmos nessa conversa. Como seria possível o vento levar tuas palavras tão longe?
- E à pessoa certa?
- Por que em latim?
- É o idioma dos ventos. – respondeu Carlo.
- Como você sabe que o vento leva mesmo suas mensagens à sua amada? - Um bombardeio de perguntas.
Carlo pediu que apanhassem um envelope num de seus bolsos, o que foi prontamente atendido. Uma carta, lida por todos. Surpresa nos rostos antes circunspetos.
- Mas aqui ela responde mensagens de uma semana... São claras as coisas que ela diz... Palavras que o vento levou... Você tem poderes de bruxo? – todos surpresos e assustados.
- Se os tivesse, não estaria preso nesta cadeira. E nem aturando tantas agressões. Em minha casa, tenho outras cartas que confirmarão o que digo.
Carlo foi solto com muitos pedidos de desculpas. Ganhou alguns amigos, pelo menos aqueles que acreditaram na sua história. Eu soube, há alguns anos, que metade da vila economizou para ajudar Carlo. E conseguiram trazer-lhe a amada. Mas não de graça. Carlo assumiu o compromisso de mandar mensagens a amigos e parentes distantes do povo da vila. No alto da montanha. Através de falas ao vento. Em latim. Qual a mágica? Segredo que o italiano Carlo jamais revelou. E eu não estou interessado em desvendar o mistério, palavra. Cruz credo! Pela terceira vez.

Roberto Villani

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

EU AMO TU - uma crônica de Roberto Villani


Ele nasceu pela manhã e aí muita coisa aconteceu no céu. O Incomensurável Mestre, apressado, convocou o Conselho dos Anjos para uma reunião importante. Dispôs seus Conselheiros ao redor da Távola Celestial. E no mesmo tom que anunciou a criação das flores, das árvores, dos animais, das águas e das estrelas, falou com entusiasmo:
- Meus Conselheiros, ele nasceu há pouco. Já derramou suas primeiras lágrimas. O PAI ordenou: quero que ela seja concebida hoje, antes da meia-noite.
- Mestre, teremos pouco tempo para... – um dos Conselheiros tentava argumentar alguma dificuldade, mas foi interrompido pelo Incomensurável Mestre:
- Hoje é o dia 21 de junho. Tem que ser hoje! E não quero desculpas. O presente dele é a felicidade por toda a vida. E ela nascerá para ele no dia 21 de fevereiro.
O Conselho reuniu-se em harmonia. Decidiram atender prontamente o pedido do Mestre.
- Está certo, Mestre. Vamos resolver a questão imediatamente!
Um recém nascido na Terra sorriu pela primeira vez. E os Anjos começaram a escrever uma linda história de amor.
Os dois, ele e ela, nasceram de famílias pobres. Ele, menino, crescia livre na simplicidade daqueles que sonham com a alegria do sempre. Pertinho do mar. Ela, menina, buscava nos sonhos a alegria simples das bonecas de pano e da amarelinha no chão de terra. Bem próxima dos campos. Embora muito distantes um do outro, tinham na alma a ansiedade do encontro. Ainda não se conheciam, mas sentiam que alguma coisa eterna estava para acontecer num momento próximo. Com quinze anos, ela mudou-se para Santos. Deixou o Interior com os pais e irmãos.
O carnaval de 1957 estava para acontecer. Ele e seu amigo Naylor combinavam ir ao baile pré-carnavalesco do São Vicente Praia Clube. O amigo levaria a namorada Rody. Rody levaria sua prima, ela, para fazer companhia para ele. Estava tudo escrito no livro dos destinos. Dia 19 de janeiro, a lua encantava o céu de estrelas. O Incomensurável Mestre e os Conselheiros observavam tudo, lá de cima, atiçando os astros para que eles brilhassem mais que nas outras noites. Aquela tinha que ser especial. Enfim, ele e ela estariam unidos, almas compromissadas, definitivamente. E o primeiro beijo, naquela mesma noite, oculto, no retorno do clube, emocionou o Mestre. E os Anjos, com alegria, aplaudiram tanto que o Universo parou para sonhar com o amor. E os poetas cantaram canções românticas que só aqueles que amam podem entender.
De mãos dadas, caminhavam pela praia e confessavam seus sonhos, suas esperanças... Programavam os filhos, confabulavam segredos ao som do mar beijando a areia... No relacionamento entre ambos, trocaram seus nomes pela palavra BEM (um dos segredos da perfeita união, confessam).
E tiveram filhos, a primeira aos vinte anos. E a segunda aos vinte e dois. O terceiro seis anos depois... E criaram (e criam) cães, gatos, pássaros... E plantaram (e plantam) árvores, flores... E conquistaram (e conquistam) amigos inesquecíveis. No decorrer da história, cúmplices um do outro, venceram as dores, apagaram as mágoas, construíram vida própria dos romances eleitos. Ela, a grande companheira, inseparável, guardiã incansável da vida dele. A coluna-mestra de uma união que perdura cinqüenta e dois anos, desde aquele longínquo 1957. Quem é ela? Rosária, meu amor além da vida. Quem sou eu? Roberto, humilde coadjuvante nesta história escrita por ela, com certeza em parceria com o Incomensurável Mestre e com os Anjos da Távola Celestial.
- Bem, eu amo tu! Que Deus e Jesus acompanhem você sempre. Assim eu o farei muito além da nossa existência na Terra, pelo infinito, pela eternidade.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

MANDIOCA NOS CORNOS


Zulmira Reza Brava nasceu lá pelos cafundó do sertão nordestino. Na fronteira entre o Não sei Aonde e o Lugar Nenhum. Filha de Maria Muma e Silvério Pereira, negro azulado de olhos verdes, vindo moleque de Moçambique. Moravam numa casa de pau-a-pique, bem no centro de savana tórrida, alugada de um sujeito um pouco menos pobre que eles. Silvério cuidava da triste sobrevivência em lavoura de mandioca e cana de açúcar. Andava quilômetros a pé, na ida e na volta, todos os dias. Maria Muma tratava da casa e dos treze filhos que a vida, inconseqüente, lhe deu.
Zulmira era a mais velha da prole. Mal e mal aprendeu a ler numa escolinha de fazenda a quilômetros de sua casa. Menina-moça, revoltava-se com a miséria de todos os dias. Até que, de repente, juntou o pouco de roupas que tinha e pôs-se porta a fora. Disse à mãe que iria tentar a vida. Se tudo desse certo, voltaria para buscar a família. Andou pra lá, andou pra cá... Por fim de algumas léguas, Zulmira ajeitou-se no Bar das Frutinhas Frescas, nome que denunciava o comércio ilegal de meninas-moças. E ali descansou a pequena trouxa pendurada às costas. E ali fez seus primeiros tostões às custas dos prazeres que até então não conhecera.
Certa noite, apavorado, atônito, um caminhoneiro invadiu o Bar das Frutinhas Frescas com um homem nos braços. Muito ferido, desacordado, o tal sujeito foi posto de costas no chão, para alvoroço geral. Havia meninas que choravam copiosamente, outras corriam de um lado para outro. Houve até uma delas que desmaiou à frente do moribundo.
- Foi briga de faca. Coisa de morte, gente. – disse o caminhoneiro que trouxe o homem. – Aqui não tem ambulância nem policia por perto...
- Deixe que disso eu cuido. Sai todo mundo de perto! Só preciso de uma mandioca das gorda. – falou Zulmira espantando quem estava por lá.
Alguém rapidamente atendeu o pedido. Zulmira meteu as mãos por entre a saia e de lá retirou um canivete. E com ele cortou duas rodelas da mandioca, cada uma colocada sobre a testa do ferido. Pôs-se de pé e, com os braços em forma de cruz, rezou oração nunca ouvida, nunca falada. Coisa dela, particular.
- Deita o cabra na cama do quartinho dos fundo. Hoje, ninguém usa o locar. Tem muita moita lá pra trás. E pra quem quer saber, aprendi essas coisa com uma tia macumbeira.
Pois a coisa funcionou. No dia seguinte, o tal homem estava de pé, novo em folha. Só algumas cicatrizes marcavam os ferimentos. Era difícil acreditar que o benzimento da Zulmira fizera tão grande milagre.
Zulmira fez-se adolescente, adulta... Do Bar das Frutinhas Frescas transferiu-se para a Casa da Mãe Napolina, cafetina famosa do Rio de Janeiro. Lá, entre um trabalho e outro, Zulmira praticava seus benzimentos, sempre com grande sucesso. Havia quem a considerasse uma grande médium, no que ela retrucava.
- Sou isso não, patrão. Mas tem um caboclo que me acompanha aqui do lado. É ele que me dá força pras mandinga e rezas das brava.
Dizem que, certa noite, apareceu por lá um doutor muito necessitado. Vinha de Brasília sob indicação de um amigo, que lhe aconselhou Zulmira como a única salvação. Então, o tal doutor desvencilhou-se da vergonha e contou seu problema à benzedeira. Zulmira pensou, pensou... Olhou o homem de frente e...
- Pro seu causo, o remédio é mandioca nos cornos. Esse tratamento levanta defunto da sepurtura. O que tá pra baxo, fica pra cima. O froxo fica forte. O covarde vira valente. Quanto à sua mulhé, não prometo que ela vorta. O dotô não deu pra ela o que ela percisava. Quem não come bem em casa, procura comê de quarqué jeito na casa de arguém.
O doutor de Brasília ficou curado. Sua mulher, entretanto, não voltou para casa. Em compensação, ele ficou famoso por suas inúmeras conquistas. E de tão agradecido, quis levar Zulmira Reza Brava para a Capital. Não conseguiu.
- Muito obrigado, patrão. Mas perfiro ficar por aqui mermo. Meu negócio é botá mandioca nos cornos dos outro. Mas quando percisar, basta me procurar. Na casa de Mãe Napolina, mandioca é o que não farta!

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

AS VIÚVAS DO SARGENTO PAU D' AGUÁ


“Amanhã, às 15 horas, sairá o féretro do velório na casa do memorável falecido, na Rua das Tordesilhas, número 96, em séqüito a pé, diretamente para o Cemitério das Saudades”. – aviso afixado à porta do sobrado onde o corpo estava sendo velado.
Sempre foi um homem simples, diríamos a primeira vista, puro, bondoso, um verdadeiro cavalheiro. Nascido de família humilde, estudou em escolas públicas até o ginásio. E concluiu o curso de perito em contabilidade, origem da sua profissão. Ozório da Silva Pernila fez o Tiro de Guerra na cidade de Ordenha, vizinha da sua pequena Moreba. Nessa época Ozório ganhou o apelido de Sargento, principalmente porque batia continência para todos que lhe cruzavam os caminhos. Era sua maneira enfática de cumprimentar. Hábito adquirido nos tempos do serviço militar.
O Sargento Ozório não foi moço de aventuras amorosas, diziam. Guardava-se, assim afirmava, para o casamento. Que haveria de ser com moça virgem, prendada e, principalmente, fiel. Por essa razão não teria pressa para encontrar sua alma gêmea. A descoberta deveria ser ao acaso, quando o amor mútuo desabrochasse ao trocar dos primeiros olhares. O que aconteceu aos seus vinte anos de idade. Namoraram, Sargento Ozório e Magdalena, noivaram e casaram ao tempo de três meses. Tudo muito rápido. Como rápido apareceram os sete filhos, um após outro, com intervalo de dez meses entre cada um. Essa derrama de rebentos desencadeou a ruína de Magdalena, de seu corpo antes escultural. E de seus nervos que, estressados, não poupavam diariamente o então infeliz do Sargento Ozório.
Passou a beber, ele. Desgostava-se voltar para casa depois de um dia de trabalho. Por esse motivo, alguns críticos o chamavam de Pau D´Água, o segundo apelido do pobre Ozório. Sargento Pau D´Água, pobrezinho. Dava pena vê-lo cambaleante buscar a fechadura da porta de sua casa. E de vê-lo tomar porradas quando dona Magdalena ajudava-o a entrar.
Moreba fazia cruzamento de linhas ferroviárias. Havia trem de norte a sul e de leste a oeste. E vice-versa. Esse privilégio da cidade oferecia oportunidades ao Sargento Pau d´Água, o Ozório, para trabalhar em empresas da região. Contabilidade era o seu ofício, como já disse. Assim, duas vezes por semana Ozório, o Sargento Pau D´Água viajava aos municípios vizinhos em busca do ganha pão. Vida sacrificada comentavam todos, o que gerava muita pena do contador.
O cortejo fúnebre caminhava lento rumo à última morada do Ozório. Todos a pé, menos evidentemente o caixão carregado por uma simples carroça. A viúva com os sete filhos à frente, não contendo as lágrimas que lhe lavavam o rosto. Acompanhavam-lhe o padre, o prefeito, alguns vereadores, o farmacêutico e outras autoridades locais. Além do povo, evidentemente. De repente, numa das ruas perpendiculares, surge mulher vestida de preto acompanhada de sete jovens, todos de luto. E do outro lado, outra mulher com sete crianças, também todas de luto. E outras... E outros... Meu Deus! Ao todo, sete mulheres, cada uma com sete filhos. Originárias de cidades vizinhas. Ao que se pode concluir, sete viúvas do cafajeste do Sargento Pau D´Água, que se entreolhavam desconfiadas, mas em silêncio. Sete maravilhas do mundo, sete correntes do espaço, sete cornos do demo, sete viúvas... Além de safado, o homem era cabalístico.
Notava-se a revolta de todos. O padre benzia-se a todo instante. Depositaram o caixão ao lado da sepultura. Silêncio absoluto. Magdalena, verde de tanta indignação, procurava manter-se em nível superior. Mas não mais chorava. Ninguém se arriscava a falar sobre o morto. As viúvas ladearam a principal, Magdalena. Cada uma com seus rebentos à frente. Em profundo silêncio. Nenhuma lágrima, nenhuma emoção de tristeza. Somente expressões de quem descobriu muito tarde a maior farsa de suas vidas.
- Morfético! – uma das viúvas apresentou seu ódio. E desencadeou reação nunca vista num enterro. Em vez de flores, a turba despejou pedras no ataúde. Palavrões, dos mais ousados, irromperam no local, todos para a degradação da alma do fulano. E retiraram-se sem que o falecido descesse à tumba. Só restou o coveiro, sentado ao lado do ataúde, fumando um cigarro de palha.
- Eu te absolvo, companheiro. – disse o sujeito, benzeu-se e atirou o cigarro no fundo do buraco. E terminou o seu trabalho, aliás, com muita propriedade.