GESTOS PERIGOSOS

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

A DENTADURA DO JACINTO


Todo dia é dia de rotina. Uns dias mais, outros menos. Mas é! Até que, por alguma razão inesperada, suprema, a coisa mude. E a rotina de antes é substituída pela rotina de então.
Todos os dias de aula, a rotina era sempre a mesma. Vassouras e rodos em ação. Água, detergentes, produtos de limpeza perfumados... A família superava-se a serviço da higiene. A casa tinha que ficar impecável. Digna de elogios. Afinal, à noite, era invadida por visitantes ilustres: os alunos.
Rua Joaquim Nabuco, 20, lá em Santos. 1977. Aluguei a casa, um sobrado, para ter minha própria sala de aula. Ali, ministrei aulas de teatro, de oratória, de dramática autógena... De criatividade redacional... A parte de baixo do sobrado fora reservada à escola. Minha residência ocupava a parte superior. Único cômodo em comum, a cozinha, que nos servia para preparar nosso alimento e para comercializar, durante as aulas, sanduíches, chocolates, refrigerantes, enfim, guloseimas em geral; a cozinha servia também de cantina.
A sala de visitas, transformada em sala de aula, circundada por bancos de madeira encostados nas paredes. Os alunos acomodavam-se nas quatro laterais, nos bancos mencionados. O espaço, na realidade pequeno, fazia-se suficiente para os exercícios e aproximação de cada um. Aconchegante. Ambiente gostoso. O calor humano acalentava os sonhos que cada um oferecia ao todo. Estavam próximos, juntos, misturados às graças, às ações tímidas, aos gracejos, ao carinho... A desvantagem do tamanho gerava a vantagem da verdade, da solidariedade, da união. Pareciam irmãos, em qualquer turma. Os pequeninos, os jovens, os adultos...
No ano mencionado, iniciei um curso de dramática autógena para integrantes do Comissariado de Menores de Santos. A pedido do então Juiz de Menores Dr. Clineu de Melo Almada. O objetivo buscava desinibição, prática da fala em público e outros requisitos essenciais à função de cada um. A dramática autógena engloba tudo isso: dramatização, oratória, argumentação, criatividade redacional... O curso tinha o tempo de seis meses, o bastante para os resultados buscados.
Uma turma formada somente por homens. Em princípio. Ruim para as práticas da dramática autógena. Para contornar, convidamos algumas mulheres. Lembro-me bem de algumas delas: Maria José, Maria Helena, minhas filhas Rosane e Rosângela, Cecília... Entre eles, o Amilcar, o Luiz Borim (o mais novo), o Pedro, o Pedrão, o Jacinto (o mais velho)... Ao todo, dezoito pessoas compunham o grupo.
Chegavam quase todos juntos, envolvidos numa alegria juvenil invejável. Adolescência resgatada para poucas horas de alegria. Valia a pena. Cumprimentavam-se, abraçavam-se. Sorriam... Inesquecível. Memoráveis momentos de franco viver. Rotina de todo reencontro na porta de minha casa.
Muitos dos temas colocados em discussão e prática durante as aulas desse grupo constituíam-se dos problemas que enfrentavam no Comissariado de Menores. Delinqüência infanto-juvenil. Uso de drogas, alcoolismo, furtos, agressões... Pode parecer algo austero, pesado, até constrangedor. Mas cuidávamos de estabelecer rotinas para suavizar as abordagens desses assuntos. No fim, as aulas transcorriam saudáveis do ponto de vista psicológico. Afinal, não era nossa intenção levar para a sala de aula os horrores dos desajustes de crianças e de jovens. Tudo era proposto de forma democrática, com a opinião de cada um e, assim, com seriedade, os exercícios eram resolvidos.
Numa dessas aulas, a dramatização fez-se necessária para a representação da visita de dois comissários à casa de um adolescente. E lá estava o velho e inesquecível Jacinto, acompanhado do Felipe, a “bater na porta da tal casa”. No imaginário, é claro. Um faz-de-conta. Para que se situe quem lê, ambos estavam de frente para alguns sentados no banco encostado na parede. O Jacinto bem à frente da Maria Helena e o Felipe diante do Pedrão. O Jacinto batera palmas algumas vezes e nada de ser atendido (fazia parte da encenação). O Felipe, num rápido movimento, bateu nas costas do Jacinto, exclamando:
- Bate mais forte, Jacinto! – a tapa foi tão forte que a dentadura do velho Jacinto voou para baixo do banco onde a Maria Helena estava sentada. Ato contínuo, o Jacinto, atabalhoado, confuso, mergulhou para apanhar sua dentadura e, erro de percurso, encaixou sua cabeça entre as coxas da Maria Helena. Esta, em choque, apertou as pernas o que piorou a situação. Todos perplexos diante de cena tão grotesca. Silêncio absoluto. Num esforço sobre-humano, o Jacinto desvencilhou-se das pernas da moça, apanhou sua dentadura e colocou-a na boca em segundos. Depois, pôs-se de pé, recompôs-se, roupas, cabelos... Olhar panorâmico. Suspirou fundo e exclamou:
- Eta muié perfumosa, essa Maria Helena!
Rompeu-se o silêncio. Explosão geral de gargalhadas. Ninguém continha o riso. Não conseguiam parar de rir. Não dava mais para continuar. Encerrei a aula por ali mesmo. E a rotina de final de aula foi alterada. Por uma razão inesperada, suprema. Que fazer, não é?

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

FORAM OS COXOS QUE...


Roberto Villani

Início de 1970.
Trabalhava comigo, na Escola Profissional de São Paulo, em Cubatão, o Prof. Hyjalmar Rubo.
Ele era o secretário geral da EPSP.
Eu, além das funções administrativas, coordenava o teatro entre alunos.
Na verdade, era o TERV desenvolvendo-se.
Tornamo-nos amigos, do que me orgulho.
O Hyjalmar sempre foi uma pessoa de primeiro nível, em todos os sentidos.
Caráter, personalidade, humano e, sobretudo, amigo.
Era um dos proprietários do Colégio Ateneu Santista, em Santos.
E secretário geral no Colégio do Carmo, da mesma cidade.
Um dia, no período da tarde, o Hyjalmar foi à cozinha da escola para tomar café.
No refeitório, eu ensaiava uma peça teatral com os alunos.
O Hyjalmar ficou entusiasmado com o que via, adolescentes engajados num trabalho especial, com muita vontade de vencer, de sucesso.
Depois de um tempo, o telefone tocou e ele afastou-se do refeitório.
- Você aceitaria dar aulas de teatro no Ateneu? Tem um pessoal lá louco pra fazer teatro... O que você me diz? – indagou o Hyjalmar à saída do expediente.
Estávamos regressando a Santos, num microônibus.
Alguns professores também voltavam e presenciaram o inesperado convite.
- Professor, você vai me resolver um problema danado. – disse-me o Prof. João Pereira dos Santos Neto, outro proprietário e diretor do Colégio Ateneu Santista. Tem alguns alunos me exigindo aulas de teatro. E eu não encontrava um professor com experiência...
Nossa reunião demorou uns trinta minutos.
Decidimos horários, honorários e outros detalhes. Saímos, eu, o Prof. João e o Hyjalmar em direção ao pátio do colégio, local escolhido para as minhas aulas.
No caminho, alguém me abordou:
- Você é quem vai dar aulas de teatro? – um aluno, portando uma bengala, abriu um sorriso. – Uma professora me contou. Disse que você viria hoje...
Carlos Alberto Lopes, o aluno que aporrinhava os diretores do Ateneu pedindo aulas de teatro.
- Vamos organizar tudo direitinho. Pode contar comigo pra tudo que for preciso.
– Eu via no Carlos o mesmo entusiasmo dos meus alunos de Cubatão. E isso me motivou desde o princípio.
Criamos o CAST – Clube Ateneu Santista de Teatro.
As aulas e os ensaios eram no período noturno, ao final das aulas.
O Carlos comprometeu-se a divulgar a novidade nas classes, convidando os alunos interessados em participar do CAST a inscreverem-se com ele.
Com toda a dificuldade de subir escadas, de caminhar, nada o impediu de visitar cada sala de aula, nos períodos da manhã e da noite.
Em São Paulo estavam apresentando a peça A Cantora Careca, de Ionesco. Teatro do Absurdo. Fiquei fascinado pelo texto e pela novidade, pelo menos para mim na época.
Resolvi então pesquisar e escrever um texto do absurdo.
Seria a primeira montagem teatral do CAST. Título: FORAM OS COXOS QUE ME MATARAM. Resumo: as peripécias de um agente funerário, o absurdo de um morto manifestando-se dentro de um caixão e as encrencas da família.
Para não deixarmos dúvidas, nome do morto: CARLOS ALBERTO LOPES.
Não preciso dizer que a estréia foi sucesso.
Diretores, professores, funcionários, alunos e familiares lotaram o pátio.
Todos nós vivemos uma noite de glória.
Mas no meio dos atores e das atrizes, entre diretores e professores, havia um que vibrava mais que todos, o Carlos Alberto.
O que ele tanto sonhou para o Ateneu tornava-se realidade.
Um grupo de teatro, inteiro.
Na verdade, o CAST foi proposta dele junto ao colégio.
Os anos passam e agente perde amigos ao longo da vida.
Fiquei alguns anos sem rever o amigo Carlos Alberto.
Numa manhã de domingo, passando pelo pedágio da balsa de travessia para a cidade do Guarujá, na poltrona de passageiro do carro de meu genro, ouvi em alto e bom tom.
- Foram os coxos que me mataram. – e enquanto cobrava, lá estava o Carlos Alberto falando o texto da inesquecível peça.
Ele sabia o texto inteiro, decorada palavra por palavra. Será que ele ainda lembra?
E novamente os anos passaram.
Nunca mais o vi.
Guardo até hoje um recorte de jornal de Cubatão, no qual ele escrevia, com comentários amáveis a meu respeito.
E as nossas histórias passaram distantes.
Mas não nos esquecemos.
Mantemos nossa amizade como sempre.
Hoje, depois de tanto tempo, reencontrei-o nas páginas do jornal Anacoluto, dele, na Internet, no qual nos mostra toda a sua capacidade criativa, para escrever, para doar, para aglutinar.
Minha homenagem a você, amigo Carlos Alberto Lopes.
Pelo Ateneu Santista, pelos os Coxos, por nossa imorredoura amizade.
Que Deus te abençoe.
-0-
VILLANI, ISSO REQUER UM COMENTÁRIO...
-0-
De fato, tudo isso aconteceu... foi assim que conheci, em 1970, Roberto Villani e assim, meio na porrada, na marra, nasceu o Clube Ateneu Santista de Teatro.
O tempo passou...
Villani se afastou de Santos, perdemos contacto, e a poucos meses, consequimos refazer contacto, e o convidei para uma coluna, neste meu ANACOLUTO, e ele me deu a honra de aceitar.
A vida dá suas voltas, e as vezes, nos coloca lado a lado, com quem nunca se queria ficar distante.
É a vida, fazendo o destino provar que nem tudo esta perdido como se pensa, e que por mais que se sinta que as pessoas distantes estão, um dia, quando menos se espera, estão elas ali, e tudo recomeça, como se nem um dia, tivesse se passado.
Bem Vindo ao ANACOLUTO, velho amigo!
Que aqui fique por muito tempo, pois a casa é tua!!!!

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

SE ELE VOLTAR


- ¿Usted puede ayudarme?
Eu estava sentado sobre uma pedra à beira do rio sem nome. Eu o chamava assim, sem nome, pois nunca tive interesse em saber como se denominava. Na verdade, isso não me seria importante, uma vez que a beleza bucólica do lugar me satisfazia. Hora do almoço. Tornara-se hábito sentar-me ali, olhando as águas deslizarem rumo ao destino que Deus lhes deu. Empurrando folhas e detritos comuns aos rios sem nome. O calor era intenso e eu não tinha a menor vontade de comer. Ao meu redor, mato baixo, relva. Mais à minha frente, a refinaria de petróleo de Cubatão. Atrás, a escola onde eu trabalhava.
- Por favor, ¿me puede decir cómo se va hasta el centro de la ciudad?
Eu ficava muito tempo por ali. Olhar aquele rio, as pedras, o mato, o morro mais adiante e a Serra do Mar bem ao fundo era reconfortante. Ali eu expulsava minhas irritações. Alimentava meus sonhos. Tentava falar com Deus durante minhas confissões ao sol, junto aos pássaros. Se Ele pudesse me ouvir, com certeza entenderia minhas tantas dúvidas e esperanças. Saberia o porquê das minhas aflições. Mas acho que Deus não perderia tempo com minhas fraquezas.
- ¿Cómo yo podría ir al centro?
- Como? Não estou entendendo... – eu estava confuso e, confesso, assustado.
Quem era aquele homem magro, com cabelos crespos e negros semicobertos por chapéu de abas largas e com barbas quase brancas, em pé, bem atrás de mim? E como ele chegou ali? Pelo meio do mato? Teria que passar pelo morro. Pela refinaria não seria possível; ninguém tinha permissão para atravessar a ponte sobre o rio. A não ser que estivesse a trabalho. E ele, com certeza, não era empregado daquela empresa. Pela escola, sem dúvidas, o vigilante não o deixaria passar.
“No habla español...” – murmurou o homem. E falou-me:
– Desculpe, mas já notei que você não compreende a língua espanhola. – disse, acomodando no chão a pesada mochila que carregava nas costas.
- É verdade, não falo espanhol, infelizmente.
- Não é difícil entendê-la. É muito parecida com o seu idioma. Basta prestar bastante atenção em cada palavra.
Levantei-me com um sorriso forçado. A surpresa e o susto ainda perturbavam minha mente, apesar da curiosidade
- Mas, então, o que o senhor me falava? Em espanhol. – tentei mostrar-me interessado.
- Preciso ir ao centro da cidade. Comer alguma coisa. Faz horas que caminho sem colocar nada na boca. Quero saber como posso chegar lá.
Olhei para todos os lados. Eu só poderia passar por dentro da escola, único caminho viável para mim.
- Eu não sei... – falei quase murmurando, procurando alguma saída.
- Por causa do vigilante? – perguntou-me.
- Sim... O único meio de passarmos para a pista é pela escola... Mas como sabe do vigilante? – eu continuava por demais confuso.
- Daqui dá pra vê-lo. Olhe! – apontou o dedo indicador para a porta de vidro nos fundos da escola. – Não é um deles?
Olhei através da porta.
- Sim. É um deles...
- Estou trazendo problemas a você?
- Claro que não.
O vigilante que estava na portaria felizmente não criou problemas. Acredito que, como eu, não estava entendendo nada. Mas, não foi difícil passar o homem pela porta principal, mesmo porque me responsabilizei pela situação. E naquele horário não havia mais ninguém na escola; estavam todos almoçando.
- Estou na minha hora de almoço. Posso levá-lo até um restaurante simples, mas que tem uma comida muito boa.
- Oh, não se preocupe. Basta dizer-me como chegar ao centro. Vou caminhando. Andar faz bem à saúde! – e sorriu.
Havia algo de especial naquele rosto. Era-me totalmente estranho mas, ao mesmo tempo, parecia-me conhecê-lo há muito tempo. Carismático? Ou a química da empatia começava a mostrar seus efeitos? Eu o acabara de conhecer e já algumas dúvidas incomodavam meus pensamentos. Mas não era o momento para perguntas.
- Permita-me levá-lo. Será um prazer, creia. – insisti.
Olhou-me com firmeza, por alguns segundos em silêncio.
- Você gosta de servir, estou certo?
- Sempre que puder. Gosto de ver as pessoas felizes. – respondi, sem esconder uma certa doze de emoção.
- Por isso seu nome combina tanto com você. É de origem anglo-saxônica. Significa “brilhante na glória”.
Minha cabeça virou.
- Como sabe o meu nome?
- Está escrito aí no seu crachá. – apontou para o meu peito, com leve sorriso.
Aliviado, simplesmente sorri, um tanto desconcertado. Entramos no meu carro. Ele acomodou a mochila no banco de trás. E sentou-se ao meu lado, com um sorriso.
- Pode me dizer o seu nome? – perguntei-lhe, dando partida no carro.
- Abdon.
- Abdon... – confirmei.
- Abdon, para servi-lo.
Seguimos em silêncio. Eu dirigia rumo ao restaurante e ele, debruçado na janela da porta do carro, olhava tudo que podia. Não estava bem vestido, com calças comuns e uma camisa modelo antigo. Nos pés, sandálias de couro. Já bem surradas talvez por tantos quilômetros de caminhadas. Mas aparentava uma elegância mágica, diria misteriosa. Parecia sempre calmo, embora estivesse com ele há tão pouco tempo. E notei que sempre tinha um leve sorriso no rosto. Um homem feliz?
Cada um pagou o seu almoço. Ele não aceitou minha proposta de pagar as despesas.
- Amigos, amigos, almoços à parte. – disse, já na porta do restaurante. E sorriu mais uma vez.
- Precisa de outra carona? Para algum lugar? – perguntei, curioso pelo destino dele a partir daquele instante.
- Não, obrigado. Daqui eu me arranjo. Vou procurar um hotel e descansar um pouco. Hoje à noite, terei trabalho a fazer.
- Trabalho?
- Sim. Proferir uma palestra. É pra isso que eu vivo. Viajo pelo mundo inteiro levando a palavra para todos os povos, em todos os idiomas. Qualquer dia retorno e conto a história para você. Até breve! E obrigado pela companhia. Foi muito bom revê-lo.
Virou-se e começou a afastar-se, com a pesada mochila às costas. Entrei no carro. Dei partida e, acelerando o motor, lembrei-me de perguntar-lhe:
- Ei, Abdon! Aonde vai ser a sua palestra? – espichei-me pela janela do carro. Não obtive resposta. Abdon já tinha sumido na dobra da esquina. Mas uma dúvida ficou gravada na minha mente: por que ele me disse “foi muito bom revê-lo”? Esse encontro já tem mais de trinta anos.
E eu ainda não decifrei o mistério.
Quem sabe, se um dia ele voltar...

Roberto Villani

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

A LAMENTOSA DONA MARINA


Morávamos numa rua muito pequena. Rua Particular João Rocha. No começo, não tinha calçamento. Nem esgoto. As casas tinham fossa. Os demais detritos corriam a céu aberto, numa vala que separava a rua de terra das casas de madeira. Uma ponte em cada entrada dava acesso às moradias. Ambiente simples, mas muito gostoso. Com horta de japonês em frente, um pouco à direita. Com direito a campinho de futebol mais à esquerda.
Lembro-me que em cada casa havia um pomar, ou quase um pomar. Manga, banana, abricó, caqui... Caqui chocolate, a gente comia ainda verde; não “pegava” na boca como os outros. Abiu, já ouviu falar? Carambola! Meu Deus, hoje me arrepio ao constatar o preço dessa fruta nos mercados. Carambola havia por toda a parte, com fartura, pra quem quisesse. Minha caramboleira, única sobrevivente no avanço do concreto no quintal da casa de meus pais. Abacateiros...
- Não posso comer abacate. É muito gordurosa essa fruta. Ataca meu fígado. Deixa meus intestinos com problemas... Um inferno! – lamentava Dona Marina, debruçada no portão de madeira.
Dona Marina era uma vizinha, duas casas à direita da minha. Invariavelmente, todos os dias, punha-se logo cedo no portão de sua casa a espera que alguém passasse. Não dizia “bom dia!”, “boa tarde!” ou “boa noite!”. Não falava o português de todos nós. Servia-se de dialeto, linguagem dos “ais”, dos “uis”. Na verdade, nós compreendíamos, mas não entendíamos.
- Ai, querida! Você não imagina a noite horrível que enfrentei. Além da enxaqueca, ui!, que dor de dente e ai!, uma coceira terrível na sola do pé direito. Ui, que sofrimento!
Não tinha jeito. Dona Marina subsistia através dos lamentos. E não cuidava só de queixar-se do corpo, mas de tudo que a rodeasse. Ai, lamentava-se do fogão... O marido, seu Maurício, passou a comprar comida pronta. Ui, lamentava-se de colchão pequeno. Seu Maurício passou a dormir no chão. Ai, ui, lamentava-se da rua, do tempo, do rádio, da televisão. Lamentou tanto do Corinthians que “seu” Maurício passou a torcer pelo Jabaquara Futebol Clube.
Enquanto isso, o progresso visitava aquela pequena rua. Chegou o esgoto, o asfalto, melhor iluminação... As casas, aos poucos, trocavam a madeira pela alvenaria. Meu pai fez do modesto chalé um belo sobrado. A horta e o campinho deram lugar a loteamento, com sobradinhos na planta. As construções, aos poucos, mudaram completamente a imagem da pequena Rua Particular João Rocha. Para cada lado que a gente olhava, encontrava uma cor do novo. Menos para uma direção, que conservava a mesma visão do antigo, do início. A da casa da Dona Marina, ainda chalé de madeira, ainda fossa. Sorte do “seu” Maurício que o calçamento roubou-lhe a ponte. Só os gastos com remédios, consultas e outras despesas supérfluas consumiam grande parte do salário do “seu” Maurício. Tudo caminhava para frente. Menos “seu” Maurício, prisioneiro dos lamentos de Dona Marina.
- Ai, eu não agüento mais o cheiro da fumaça de tanto carro. Ui, meus pulmões estão cheios de gás carbônico e enfisema. – dona Marina lamentava o trânsito trazido pelo asfalto. Lamentava o barulho dos motores, das buzinas, da luz dos faróis...
De tanto se lamentar das noites escuras, “seu” Maurício dormia com as luzes acesas. Pelos lamentos sobre os programas de televisão, “seu” Maurício só ouvia o rádio. Com certeza, dona Marina era de se lamentar. Provocava no marido reviravoltas nos costumes. Drásticas decisões, nas tentativas dele para estancar o máximo possível dos lamentos dela.
Nunca mais os vimos. Mudamos de endereço. As histórias da Particular João Rocha ficaram para trás. Novas ruas, novos vizinhos... Lamentos? Alguns, por que ninguém é de ferro. Dona Marina? Soubemos, foi abandonada pelo “seu” Maurício de tanto se lamentar dele. Drástica decisão. A derradeira tentativa para estancar definitivamente os lamentos da lamentosa Dona Marina.
Dizem que “seu” Maurício, depois de muito tempo, tinha apenas um lamento a fazer: não ter tomado essa drástica decisão quando Dona Marina lamentou-se do hotel da sua lua de mel. Da cama com colchão de mola. E até da performance do pobre “seu” Maurício, naquele hotel, sobre aquele colchão de molas.
Ai! Ui! Meus dedos estão doloridos de tanto escrever neste teclado... Cuidado, isso pega!

Lamentar é uma prerrogativa humana. Serve para descarregar um pouco os infortúnios nos ouvidos de quem ouve. Entretanto, é preciso compreender que o lamento, os queixumes, nem sempre são eficientes para o alívio. As pessoas que nos cercam, por mais íntimas, por mais próximas, não devem ser encaradas como cúmplices nas nossas desgraças, ou parceiras na nossa má sorte. Além disso, invariavelmente não têm poderes para consertar o que temos de errado. Como líderes do nosso próprio destino, devemos encarar nossos problemas de frente, enfrentá-los para buscar as soluções mais viáveis. A grande maioria das soluções está em nossas próprias mãos.

Roberto Villani

sábado, 3 de janeiro de 2009

ESTÓRIAS DO PESCADOR TIÃO COXO


Tião Coxo estacionou o velho GMC 44 - Chevrolet bem na porta da Bodega das Moscas como era conhecido o estabelecimento comercial da Idália Macho. Vinha de Tavalá a caminho de Vempraqui, por conta de algum carreto de qualquer coisa que desse para alguns trocados. Parou ali porque a fome estava brava. Já conhecia Idália Macho de outras eras. Transformista arretado(a), macho da peste quando enfrentava pendenga de cabo de esquadra. De resto, uma dama das mais bem concebidas ao termo de jamais virgem. Cozinhava muito bem comidas da região. O que emperrava o consumo de terceiros era a falta de limpeza no local, bem ao gosto das varejeiras.
Tião Coxo acomodou-se junto a mesa do lado de fora. Mais fresco, apesar da poeira soprada da estrada de terra. Sentou-se e, soltando gases, curvou-se para desabotoar as botinas. Já com os pés à mostra, os dedos movendo-se para quebrar um pouco a falta de circulação, Tião Coxo olhou para Idália Macho e justificou-se:.
- Me desculpe o mau cheiro. Coisa do feijão branco que tracei ontem à noite. – e sorriu mostrando os dentes em completa ruína. Mal terminava o palavreado e Idália Macho já ligava três ventiladores na força total.
- Me desculpe o amigo, mas tô com mais dois freguês que, pelo fedor que já arruína o nariz de quem quer que cheire, quase botaram os bofe pra fora. Mas me diga, o amigo come o quê?
- O que tivé vai me fazê gosto.? – disse Tião Coxo com os cotovelos no tampo da mesa. – E me traz também três golada de cachaça das boa. - As três doses de pinga foram servidas rapidamente. Em duas investidas do Tião Coxo, metade da bebida servida foi pela goela a baixo. Conhecido pelas redondezas como homem contador de causos, e dos bons, inspirou Idália Macho, que queria atração pro o boteco:
- Se o amigo contar algum causo porreta, não cobro a cachaça.
- Se lhe faz gosto, providencio um agorinha mesmo. – disse Tião Coxo ajeitando-se na cadeira mais pra lá do que pra cá. E continuou: - Meu gosto bom é a pesca. Sempre que posso, desentoco a minha vara e lá vou eu pra beira de algum riacho. – Deu um tempo pra mais uma talagada de caiana, enquanto os dois fregueses se achegavam para ouvir melhor. – Já tinha escutado falarem de um tal rio Viagra. Que nele, nenhuma vara de pescador nega fogo. Resolvi ver pra crer. Era uma tarde de céu feio. Procurei um lugarzinho jeitoso pra me sentar. E botei minha vara pra trabalhar. – Outra emborcada da birita da Idália Macho. E prosseguiu sob a atenção dos três escutadores: - Tava eu ali algum tempo, nada de peixe na minha minhoca, quando senti um aperto nas minhas perna. Eu tava quase dormindo... Amigos, uma cobra gigantesca, gorda, tava se enrolando na minha pessoa. Fiquei só observando o que ela pretendia. Quando ela tava enrolada até o meu peito descunfiei da má intenção da funesta. – Outra engolida severa da cangibrina. – Eu pensei, se eu não me incomodar com o incômodo, essa anatonta me prega uma peça. Aí, catei o pescoço da fulana com as duas mão. Olhei bem nos olhos dela e falei com braveza: escuta aqui! Se você apertar muito a minha caixa de lombriga, vou ter que libertar por baixo um vento peçonhento, daqueles de enojar estômago de urubu. Te garanto que tua pele apodrece rapidinho e teu nariz vai cheirar merda por duas semanas mais ou menos.
- E aí? – perguntou ansioso um dos escutadores.
- Nem acreditei. Ela me encarou parecia muito brava. Até a língua ela escondeu na boca. Depois, foi se alargando devagarinho e, muito sem graça, começou a entrar no rio. Já lá no meio das água, virou a cabeça pra trás, me deu mais uma encarada, e se mandou, acho que pros quintos dos inferno. – Coçou a cabeça e concluiu: - Agora, quero comida! E cachaça de graça conforme o prometido.
Mesa cheia, galinha de cabidela, feijão branco com jerimum, carne seca com batatas, carne de porco tostada, arroz e farofa. Tião Coxo comia de mão cheia. Não usava garfo pra não perder tempo. Os dois fregueses escutadores não saíram de perto do sujeito, admirando-o como astro da televisão. Idália Macho preparou mais umas quatro doses de cachaça em homenagem à maior mentira que ela(e) já tinha escutado. Tião Coxo acabou de comer, tirou do bolso traseiro da calça uma carteira de couro maucheiroso e pagou. Levantou-se, calçou as botinas, cumprimentou os amigos presentes e saiu em direção ao seu velho caminhão. Além da porta, deixou escapar um estrondo ensurdecedor acompanhado de fedor indescritível. Os escutadores desapareceram como veado fugindo de leão faminto, no meio do pó da estrada. Idália Macho, com um guardanapo tampando o nariz, rapidamente arriou as portas do boteco; apareceu uma placa que dizia: “Fechado pra balanço”. Pelo chão das redondezas, milhares de moscas varejeiras mortas, esturricadas.