GESTOS PERIGOSOS

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

UM MINUTINHO....


Mal estar na altura do estômago. Queimação. Gastrite? Talvez a salada com muito vinagre... Não, gastrite não era. Uma dor misturada com ansiedade irrompia no peito. Súbita. E aumentava assustadoramente. A ponto de espalhar-se pelo tórax e abraçar as costas. Pensou em tomar alguma coisa para conter a dor. Enfarto? Náuseas, tonteiras. Pôs-se de pé, rápido. Lembrou-se de um amigo que teve a mesma coisa. Mas sobreviveu pelo atendimento rápido do seu médico. E de um caso que lhe foi contado na hora do almoço. Um sujeito que teve dores horríveis no peito, foi socorrido e nada de grave. Gases pressionavam o abdômen e a dor apareceu. No caso dele, a coisa era grave. A urgência fazia-se urgente. Mal e mal caminhou até o telefone. Na agenda, o número do seu cardiologista. Com extrema dificuldade, mal podendo respirar, discou para o consultório do médico. E, graças a Deus, a recepcionista atendeu...
- Um minutinho... – disse a moça e soltou música eletrônica de espera.
Fim de semana prolongado. Loucura de êxodo. Todo mundo deixa a sua cidade para saborear visitas. Rever parentes, amigos, lugares... Malas e bolsas coloridas corriam de um lado para outro em busca do transporte. Falatório de terminal rodoviário, risos de aventuras... Tudo muito gostoso, mas o último ônibus da noite estava de partida. Era preciso ser rápido para conseguir embarcar. Caso contrário, teria de ficar até às 7 da manhã quando sairia o primeiro do outro dia. A lenta fila gerava preocupação. Felizmente, chegou-lhe a vez. O tempo certo de comprar a passagem, correr e embarcar no ônibus.
- Um minutinho... – disse a moça e deixou o guichê rumo ao toalete.
Fila de banco todo mundo sabe como é. Gigantesca quase sempre. Exercício de paciência. As fisionomias mostram a insatisfação da demora. Mas, o que fazer? Último dia para pagamento do boleto. Se deixasse para pagar depois, a multa desencorajaria qualquer bolso. O jeito era manter-se ali e aguardar a sua vez. Aproveitar e ler as propagandas do banco. Se você empregar tanto, pode ser sorteado com um carro todos os dias. Ou uma casa por mês... Dentro de um banco, você tem mil oportunidades para comprar a felicidade, não é mesmo? Entretanto, o problema surgia através da dor de barriga que anunciava necessidades fisiológicas. Faltavam somente três pessoas. Com um pouco de sorte, daria tempo de pagar a conta e voar para o primeiro banheiro à disposição. E, mais uma vez graças a Deus, a sorte o amparou. Chegou ao caixa com muita fé.
- Um minutinho... – disse o moço e retirou-se para atender o telefone.
Quer mais? Ele estava com 85. Ela, 80. Dali a três dias completariam 50 de casados. Bodas de ouro. Uma história feliz de convivência feliz. Do dia-a-dia em comunhão. Amor infinito. A comemoração deveria ser primorosa. Como nos velhos tempos. O problema era que há mais de dois anos ele não tinha ereção. Em tempo algum. Então, resolveu procurar o seu geriatra. Pediu ao médico o milagre para a consagração da festa. Viagra não resolveria a questão. Mas o doutor, experiente nas vicissitudes da idade, receitou-lhe uma fórmula para ser manipulada. Remédio porrete, mas que tinha efeitos efêmeros. O ato deveria acontecer tão logo a coisa começasse a acontecer. E chegou o dia, a hora. Beijos daqui, abraços dali... Um carinho atrás do outro... Não contou nada a ela. Escondido, tomou o remédio. A falsa imagem de virilidade. De repente, a tal fórmula mostrou o porquê da sua eficiência. E ele não poderia demorar. Agarrou-se nela como um garanhão em pleno cio. Ela, devido a pouca esperança, nem havia tomado banho. Com certa dificuldade, soltou-se dele...
- Um minutinho... – e abandonou-o na cama rumo ao chuveiro.
Ah, mas o fato mais marcante, o exemplo mais positivo, ainda estou por contar. Esse vai deixar cada leitor vibrante de emoção. Algo jamais visto, jamais pensado. Querem conhecer? Ótimo! Mas antes...
- Um minutinho...

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Moleskine, você conhece?



Eu faço anotações em pedaços de papel. Confesso, sou um tanto desorganizado para registrar coisas e fatos do dia-a-dia. Manter um diário, nunca! Nem tentei em toda a vida. Entretanto, há quem dedique parte do tempo de cada dia para anotar a sua história de cada dia. Como ganhar o pão, aquele de cada dia.
Bruce Chatwin (1940 – 1989), escritor inglês, viajava muito. Colhia, nessas jornadas, fatos históricos dos lugares por onde passava. Entrevistou muitas personalidades, que colaboravam para sua coleção de histórias. Esse acervo cultivado ao longo de alguns anos, ao longo das viagens, acabou fornecendo material para dois livros: O Rastro dos Cantos, que fala sobre música aborígine, e In Patagonia, uma espécie de relatório sobre a selvagem América do Sul.
Na verdade, Bruce era um metódico colecionador de histórias e relatos de boa parte do mundo. Tinha o hábito de investigar, de pesquisar e de registrar tudo num peculiar livreto de anotações. Moleskine é o nome desse livreto. Pequeno, muito prático, com folhas duráveis bem presas e amarradas por um elástico. Por seu porte pequeno, pode ser levado nos bolsos do casaco ou do paletó, o que o torna companheiro dos artistas em geral. É claro que quando Bruce o conheceu, apaixonando-se por ele, esse livreto já era um clássico.
Moleskine, na penumbra da história, gerou lendas em torno de si. Há citações de que artistas das mais variadas classes utilizavam essa espécie de caderninho para anotarem a evolução de suas produções. É possível que Ernest Hemingway (1899 – 1961), Pablo Picasso (1881 – 1973), Henri Matisse (1869 – 1954) tenham possuído moleskines para suas anotações, embora nada comprovado. Dizem até que Hemingway tenha escrito suas crônicas de Paris, nos anos 20, quando freqüentava vários cafés daquela cidade. Conta-nos algumas lendas que ele tirava seu moleskine e um lápis do bolso e começava a escrever naquelas páginas tão inspiradoras. Confirmado, Vincent Van Gogh (1853 – 1890) usou esse tipo de livreto, pois em 2002, em Amsterdam, seus moleskines foram expostos à visitação pública.
Durante dois séculos o moleskine foi o caderno legendário de intelectuais e de viajantes. Sua produção foi interrompida em 1986 com a morte do seu fabricante. Mas, com a iniciativa da produtora italiana de marca Modo & Modo, o charmoso caderninho voltou às prateleiras de vendas logo no início do nosso século. É claro que hoje, com a Informática ao nosso dispor, escrever a mão é coisa do passado. O moleskine é "um sopro de romantismo e descrição". Mas não duvidem se, em médio prazo, estaremos vendo nas mãos de artistas e intelectuais o famoso moleskine, num resgate interessante dessa moda européia, a despeito da atual tecnologia.
Roberto Villani

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A LENDA DO BAILE DE NOIVADO


A Rua Principal foi tomada por nevoeiro londrino de Jack. Mal se podiam ver os paralelepípedos incrustados no chão a título de leito carroçável. Início de noite. Ninguém nas redondezas. Alguns vislumbres de luz surgiam de algumas janelas ao longo da via. Cenário lúgubre. Descolorido. Destacavam-se, tênues, as auras nas luminárias a gás penduradas nos postes de ferro. Ninguém a vista. Nenhum animal por perto. Um pio de ave noturna propagou-se discreto no ar.
Algumas pessoas saíram à porta do casario amarelo. Vestidas a rigor, as moças esboçavam alegria incontida. Os rapazes, em seus vistosos ternos, animavam-se entre expectativa e sorrisos femininos. Quebravam, com a euforia, o ambiente soturno daquele cenário. Todos fixavam o olhar à esquerda da via. Esperavam alguém muito importante.
Súbito, ruídos vindos da esquerda aliavam-se a surda algazarra dos jovens à porta. E rasgavam o silêncio do lugar. Tropel de cavalos anunciava a aproximação da carruagem tão esperada. A parelha eqüina, imponente, parou diante de todos. Muitos se aproximaram do veículo. E aplaudiram o casal Marcel e Marguerite que deixavam o coche. Beijos, abraços, cumprimentos de mãos fortes, palmas... A turba acompanhou o jovem casal para o interior da casa amarela. E não notaram, na saída da carruagem, um vulto oculto nas sombras da noite, que observava cada movimento na calçada à frente.
A sala principal da bela casa fora construída com suntuosidade. Iluminada por lindíssimos candelabros sabiamente colocados sobre colunas à encosta das paredes. Entremeados com sofás e poltronas estilo Luis XVI, o que oferecia aspecto clássico e rico ao ambiente. Nas paredes, além de vidraças e portas de imensa riqueza, grandes pinturas retratando homens e mulheres da nobreza formavam majestoso porta-retrato familiar. Num dos cantos da sala, alguns músicos – instrumentos de corda, aliciavam casais para o baile. Petiscos e licores passavam em bandejas de prata nas mãos de garçons trajados com uniforme de gala. A alegria era esfuziante. O bem estar, instalado em cada coração presente, fazia do amor a força mestra do calor humano daqueles momentos.
- Um viva aos noivos Marcel e Marguerite! – alguém se manifestou. A música deu trégua, os casais formaram um círculo em torno dos noivos e algumas palavras, após o “viva!”, foram ditas pelos jovens casadoiros e por convidados.
- Eu agradeço todo o carinho que vocês nos oferecem, meus amigos. Este baile de noivado haverá de se perpetuar pelos séculos em nome do nosso indestrutível amor. – disse Marcel beijando Marguerite, sob os aplausos efusivos da platéia em círculo.
O tal vulto, até então escondido na despreocupação dos presentes, invadiu o ambiente enquanto todos se reuniam no centro da sala. Ninguém o viu esgueirar-se ao longo das paredes. Trajava chapéu e pesada capa preta, que lhe ocultavam o rosto e o corpo. Encostou-se próximo aos músicos, sem ser visto por ninguém; parecia esperar momento oportuno para agir. Dali pode ver e ouvir veementes discursos, todos de exaltação aos noivos e àquela memorável ocasião.
- Que retorne a música e a dança! – comandou Marcel. E o baile prosseguiu.
Após algum tempo, o tal homem aflorou de seu sinistro comportamento e colocou-se diante dos músicos.
- Um momento! – disse em tom ríspido. E continuou sob o espanto de todos, agora postados diante de si. – Este noivado não tem sentido. Ela declarava amor por mim por toda a vida. – Um dos presentes quis investir contra o homem, mas Marcel o impediu. – Esse canalha, Marcel, a seduziu com sua riqueza, com sua nobreza... Ele a roubou de mim! – concluiu e, enfurecido, sacou da cintura a espada oculta pela capa e avançou insano sobre Marcel. O horror instalou-se na sala. E a espada transpassou o peito do jovem noivo. Enquanto muitos tentavam socorrer Marcel, o assassino desaparecia na escuridão da Rua Principal.
A manhã chegou com a dissipação do nevoeiro pelo sol. A Rua Principal atualizou-se, mostrando prédios de apartamentos e edifícios empresariais. O asfalto lotava-se de carros, ônibus, caminhões... Trânsito pesado e complicado. Num apartamento do prédio construído no mesmo lugar do casario amarelo, algumas pessoas aglomeravam-se em seus cômodos. Legistas, policiais, parentes e jornalistas observavam atentos o corpo inanimado de um jovem caído no centro da sala.
- Sabe o nome dele? – perguntou um repórter ao outro.
- Marcel, eu acho.
- Como ele morreu, você sabe?
- O legista disse que foi assassinado. Uma longa lâmina, que eles ainda não identificaram, transpassou o peito do coitado.
- Alguém suspeito?
- Ninguém...
Uma lenda: o destino cruel de um jovem e o ciúme descontrolado de um amante inconformado. A cada cem anos, no dia e no mês da ocorrência, um baile de noivado é realizado nas trevas do inconcebível. Elaborado pela magia da imaginação humana. E alguém chamado Marcel morre, interrompendo um romance perpetuado pelos séculos em nome de indestrutível amor.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

POEMA DE UM LOUCO


Rodo pelo salão das minhas quimeras. Acendo as luzes da minha imaginação. Olho-me no espelho da ilusão. Vejo-me radiante, vestido com traje a rigor. Um tango espalha sons pelos quatro cantos. Ecoa pelas paredes incandescentes da minha euforia íntima. Quero, neste momento, dançar um grande sonho de amor.
Clamo aos meus sentidos as sensações próprias dos meus objetivos. O ritmo é tão quente que não consigo parar os meus pés. Minhas pernas. Esboço, então, os primeiros passos, ainda solitários. Minha mente extravasa emoções tantas que sinto vontade de rir e de chorar enquanto imagens transpassam minha pele, minha carne, minh´alma. Estendo a mão ao nada, a ninguém. Impaciente, rogo aos deuses da esperança a chance de encontrar-me. Confesso que estou um tanto perdido nesta casa das memórias. Cabeça de um corpo que ainda não despertou para o delírio.
Meus olhos, antes transparentes, põem-se insondáveis como defesa plena da minha incredulidade ao sonhar, de amar. Por onde andaria, neste momento, o meu coração? No meu peito já não bate, pois se acomodou no âmago daquela que o roubou de mim. Triste fim de um sonhador romântico que jaz aos pés do fracasso.
Mas eis que, num vislumbre da mente que desperta, num repente mágico de solução irreal, minha dama surge como deusa sempre esperada. Estende-me as mãos e num sorriso devolve-me por momentos a graça da vida. Trago-a de encontro a mim e, ao contato de seu corpo inteiro, renasce em minhas entranhas o vigor de jovens tempos. Quero embeber-me do perfume que exala das rosas incrustadas em seus cabelos. Quero compor os mais lindos poemas que, etéreos, transformam em luzes as palavras do meu platônico amor. Sorvo em seus lábios o mel que me põe louco. Que me fez louco. Que me faz louco.
Entrelaço com as minhas as longas pernas da minha escultura infinita. Giro ao longo de sua cintura. Minha mão corre por entre suas curvas, pleno prazer de tê-la minha, somente minha. O calor de sua pele aquece meus pensamentos antes frios, sombrios. Bebo o néctar da gratidão. O tango arrasta-me à fantasia do êxtase. A imagem dela apaga-me o pranto contido. Sou feliz pela eternidade daquele instante.
Contornos ritmados, dançamos ao sabor de algo que nunca acabará. É assim que desejo. É assim que me sinto neste imenso salão de quimeras. É assim que me exponho ao medo de que tudo termine como sempre. O fim que me leva à realidade. Realidade que me consome a esperança de tê-la de volta. Insanidade... Quando o tango parar, acabar... Quando tudo se desfizer, inconseqüente desfecho de um poema de amor escrito numa página do diário de um louco...