GESTOS PERIGOSOS

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A LENDA DO BAILE DE NOIVADO


A Rua Principal foi tomada por nevoeiro londrino de Jack. Mal se podiam ver os paralelepípedos incrustados no chão a título de leito carroçável. Início de noite. Ninguém nas redondezas. Alguns vislumbres de luz surgiam de algumas janelas ao longo da via. Cenário lúgubre. Descolorido. Destacavam-se, tênues, as auras nas luminárias a gás penduradas nos postes de ferro. Ninguém a vista. Nenhum animal por perto. Um pio de ave noturna propagou-se discreto no ar.
Algumas pessoas saíram à porta do casario amarelo. Vestidas a rigor, as moças esboçavam alegria incontida. Os rapazes, em seus vistosos ternos, animavam-se entre expectativa e sorrisos femininos. Quebravam, com a euforia, o ambiente soturno daquele cenário. Todos fixavam o olhar à esquerda da via. Esperavam alguém muito importante.
Súbito, ruídos vindos da esquerda aliavam-se a surda algazarra dos jovens à porta. E rasgavam o silêncio do lugar. Tropel de cavalos anunciava a aproximação da carruagem tão esperada. A parelha eqüina, imponente, parou diante de todos. Muitos se aproximaram do veículo. E aplaudiram o casal Marcel e Marguerite que deixavam o coche. Beijos, abraços, cumprimentos de mãos fortes, palmas... A turba acompanhou o jovem casal para o interior da casa amarela. E não notaram, na saída da carruagem, um vulto oculto nas sombras da noite, que observava cada movimento na calçada à frente.
A sala principal da bela casa fora construída com suntuosidade. Iluminada por lindíssimos candelabros sabiamente colocados sobre colunas à encosta das paredes. Entremeados com sofás e poltronas estilo Luis XVI, o que oferecia aspecto clássico e rico ao ambiente. Nas paredes, além de vidraças e portas de imensa riqueza, grandes pinturas retratando homens e mulheres da nobreza formavam majestoso porta-retrato familiar. Num dos cantos da sala, alguns músicos – instrumentos de corda, aliciavam casais para o baile. Petiscos e licores passavam em bandejas de prata nas mãos de garçons trajados com uniforme de gala. A alegria era esfuziante. O bem estar, instalado em cada coração presente, fazia do amor a força mestra do calor humano daqueles momentos.
- Um viva aos noivos Marcel e Marguerite! – alguém se manifestou. A música deu trégua, os casais formaram um círculo em torno dos noivos e algumas palavras, após o “viva!”, foram ditas pelos jovens casadoiros e por convidados.
- Eu agradeço todo o carinho que vocês nos oferecem, meus amigos. Este baile de noivado haverá de se perpetuar pelos séculos em nome do nosso indestrutível amor. – disse Marcel beijando Marguerite, sob os aplausos efusivos da platéia em círculo.
O tal vulto, até então escondido na despreocupação dos presentes, invadiu o ambiente enquanto todos se reuniam no centro da sala. Ninguém o viu esgueirar-se ao longo das paredes. Trajava chapéu e pesada capa preta, que lhe ocultavam o rosto e o corpo. Encostou-se próximo aos músicos, sem ser visto por ninguém; parecia esperar momento oportuno para agir. Dali pode ver e ouvir veementes discursos, todos de exaltação aos noivos e àquela memorável ocasião.
- Que retorne a música e a dança! – comandou Marcel. E o baile prosseguiu.
Após algum tempo, o tal homem aflorou de seu sinistro comportamento e colocou-se diante dos músicos.
- Um momento! – disse em tom ríspido. E continuou sob o espanto de todos, agora postados diante de si. – Este noivado não tem sentido. Ela declarava amor por mim por toda a vida. – Um dos presentes quis investir contra o homem, mas Marcel o impediu. – Esse canalha, Marcel, a seduziu com sua riqueza, com sua nobreza... Ele a roubou de mim! – concluiu e, enfurecido, sacou da cintura a espada oculta pela capa e avançou insano sobre Marcel. O horror instalou-se na sala. E a espada transpassou o peito do jovem noivo. Enquanto muitos tentavam socorrer Marcel, o assassino desaparecia na escuridão da Rua Principal.
A manhã chegou com a dissipação do nevoeiro pelo sol. A Rua Principal atualizou-se, mostrando prédios de apartamentos e edifícios empresariais. O asfalto lotava-se de carros, ônibus, caminhões... Trânsito pesado e complicado. Num apartamento do prédio construído no mesmo lugar do casario amarelo, algumas pessoas aglomeravam-se em seus cômodos. Legistas, policiais, parentes e jornalistas observavam atentos o corpo inanimado de um jovem caído no centro da sala.
- Sabe o nome dele? – perguntou um repórter ao outro.
- Marcel, eu acho.
- Como ele morreu, você sabe?
- O legista disse que foi assassinado. Uma longa lâmina, que eles ainda não identificaram, transpassou o peito do coitado.
- Alguém suspeito?
- Ninguém...
Uma lenda: o destino cruel de um jovem e o ciúme descontrolado de um amante inconformado. A cada cem anos, no dia e no mês da ocorrência, um baile de noivado é realizado nas trevas do inconcebível. Elaborado pela magia da imaginação humana. E alguém chamado Marcel morre, interrompendo um romance perpetuado pelos séculos em nome de indestrutível amor.

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