GESTOS PERIGOSOS

segunda-feira, 20 de abril de 2009

"A CAIXA DOS PROBLEMAS"


Não há dúvidas de que o controle das emoções é algo complicado. São poucas as pessoas que, no teor da verdade, podem ser consideradas portadoras de total controle emocional. Por mais calmos, por mais equilibrados, sempre ocorrem momentos em que algum fato, bom ou ruim, desarticula nossas forças de equilíbrio. E essa fraqueza, se assim podemos chamar, é sempre desagradável, principalmente quando gera atitudes afetadas por exacerbações.
Não devemos esquecer que a motivação, uma das sustentações dos nossos avanços evolutivos, assim como a criatividade, é parceira de uma consciência emocional adequada. Então, para chegarmos a uma condição de controle emocional, que não seja perfeita, mas ideal, devemos recorrer ao autoconhecimento, à autoavaliação, principalmente no que diz respeito aos sentimentos, pois reconhecê-los enquanto acontecem é elemento decisivo da inteligência motivadora e criativa. Se avaliarmos um sentimento qualquer que nos incomode, descobrindo o âmago de sua origem, podemos, pelo menos tentar, dirigi-lo para áreas de menor importância para nós; que fiquem em segundo plano até que tudo se reorganize em nossas emoções.
Superar ansiedades e temores é a arma mais poderosa do autocontrole. O que nos gera ansiedade, deixamos para pensar amanhã. O que nos provoca medos, enfrentamos agora com a coragem e a sutileza do desprezo. O que devemos lembrar é a certeza de que a todo tempo vivemos realidades decisivas. A vida contemporânea expõe cada um de nós a desafios cruciais à nossa própria sobrevivência. Somos testados a todo instante. E isso gera sensações de instabilidade emocional, e somos levados à irritabilidade, à desconfiança, à incerteza, enfim, a toda a sorte de negativismo. E erramos conscientemente, mas amparados pelo desconhecimento de nossas próprias verdades.
Nessas fases, devemos buscar conteúdos para a vida, pelo que somos. É importantíssimo buscarmos artifícios que acomodem nossos sentimentos ruins, nas tentativas para educarmos nossa maneira de ser em razão da nossa possibilidade de ter.
Ariosto é casado. Tem dois filhos, já na fase escolar. Trabalha desde muito jovem. Acorda às cinco, banha-se, um gole de café e beijos de despedida na esposa e nos filhos, que ainda dormem. Ariosto trabalha numa indústria de rações para cães e gatos, no setor de produção. Freqüentou o ensino médio, sem conclui-lo, embora ainda tenha esperança de conquistar mais esse diploma. Sonha cursar uma faculdade. Melhorar o currículo para melhorar o salário. Melhorar o salário para melhorar as condições devida da família. Sonho de todo trabalhador.
Com sacrifício, às custas de prestações, comprou um Fusca. De cor verde limão, o que lhe causa momentos de irritação pelos deboches de seus colegas.
- Era o que eu podia comprar naquele momento... – nervoso, respondia às zombarias. E completava: - Ainda vou ter um BMW! – provocando muitas gargalhadas.
Podemos notar que Ariosto, na verdade, tem três desejos, digamos sonhos, de cunho pessoal: formar-se numa faculdade, melhorar seu salário e possuir um automóvel da marca BMW. Mas, no momento, ele tem um curso médio incompleto, um salário mais-ou-menos e um Fusca verde limão, que, por sinal, acaba de pifar. Pelo semblante do Ariosto, percebe-se que ele não está conseguindo equilibrar seu ‘astral’.
- Quer uma carona, Ariosto? – solidariedade de um colega, que lhe oferecia a garupa de sua motocicleta.
Ariosto sempre detestou andar de motocicleta. Tinha pavor. Mas não tinha outro jeito. Ficar ali não resolveria nada. Unir o útil ao agradável: no dia seguinte, pegaria carona com um mecânico. Ele, de volta ao trabalho e o mecânico, de encontro aos problemas do Fusca verde limão.
Para ele, a voltar na tal motocicleta foi horrível. O colega não era cuidadoso na direção, corria, saltava, chegou a empinar a máquina para exibir-se ao Ariosto, quase atirando-o ao solo. Imagine, o(a) amigo(a) ledor(a) o estado emocional do Ariosto naquele fim de tarde.
Meio torto, cambaleante, Ariosto deixou a moto, despediu-se do colega, agradecendo, e rumou à entrada de sua casa. No chão, perto da porta de entrada, uma caixa de metal. Ariosto abaixou-se, abriu-lhe a tampa e colocou suas mãos dentro dela por instantes. Fechou a tampa da caixa de metal, ergueu-se e, finalmente, entrou em sua casa. O colega assistiu todo o ritual do Ariosto. Passo por passo, gesto por gesto. E a curiosidade fê-lo bater palmas.
- Uma pergunta. – disse ao Ariosto assim que ele abriu a porta. E prosseguiu: - O que você fez com as mãos dentro dessa caixa?
- Deixei meus problemas, minhas ansiedades, meus medos e meus nervosismos guardados dentro dela. Essa é a minha caixa dos problemas. Não quero trazer toda essa porcaria pra dentro da minha casa. Quero paz com minha família. É uma forma que eu aprendi na Internet para controlar as minhas emoções.
- E dá certo?
- Acho que sim. Posso garantir que, assim, meus sentimentos não interferem na harmonia do meu lar. Amanhã, quando eu sair para o trabalho, ponho novamente minhas mãos na caixa e recolho aquilo que deixei agora a pouco. E garanto a você que a quantidade de porcarias será bem menor. A grande maioria morre durante a noite, talvez pela falta do oxigênio do meu cérebro. – riu, tornou a despedir-se do colega e entrou.
O segredo é condicionar os pensamentos à atitudes coerentes. Aprender a separar o que é sentimento nocivo das emoções saudáveis. Conhecer os limites que a vida impõe, bloqueando, na mente, a entrada dos desejos impossíveis, verdadeiros vilões e causadores da infelicidade. Saber adiar, para depois da própria capacitação, as investidas decisivas na conquista de escalas maiores na realização de grandes sonhos.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

UMA HISTORIA CHAMADA VIDA, PAIXÃO


Sexta-feira de uma semana santa. Feriado no país. No estado, na cidade... Na fazenda. Onde Severino trabalha no campo. Na terra, camponês. Mãos calejadas, que esfregam o sabão no rosto sulcado pelo sol de todos os dias. Severino, homem que só tem um bem. Zezinho, menino de seus sete, oito anos, que reflete o futuro que o pai não viu. Menino sem mãe. Como troca de vida no ato do parto. Severino de poucos livros, Zezinho de poucas letras. Ambos, na sua infinita inocência, apóstolos da humildade que Ele tanto pregou.
Zezinho veste-se com a única calça de brim, que ganhou de aniversário. Escolhe a camisa azul, deixando a branca na mala de lona embaixo da cama. Penteia com jeito os loiros cabelos, escova os dentes como aprendeu na escola e amarra os cordões do tênis já gasto pelas pedras dos caminhos. Andar lento, caminha até a porta de seu quarto, olha para o céu e sorri. O sol lá está, correspondendo com sorriso cheio de luz. Cumplicidade de menino e sol, desenhando cenário incomparável nas telas da existência.
Severino segura o filho pela mão. E saem, ambos, pela estrada de terra que acessa o mundo. Zezinho nunca foi à cidade. Primeira vez. Estréia de espetáculo inesquecível, que abre as cortinas dos olhos e apresenta toda a cor da vida. A longa caminhada começa a ser compensada pelo prazer de ver. Carros de todos os tamanhos, de todas as formas, de todas as posses passam lentos e velozes. Levantam poeira, às vezes terra. Levantam sonhos ocultos sob os tapetes do desconhecido até então. Pessoas atravessam praças, calçadas, bueiros, buracos... Cavalos, cachorros, carroças e promessas de muitas coisas ao passar de seus passos.
Severino pára diante de uma vitrine. Observa com olhar distante um terno vestindo um manequim. Zezinho contempla o boneco à sua frente e o compara com seu pai em pensamento. Não são parecidos, mas seu pai ficaria melhor naquela roupa. Outras vitrinas, outras visões, outros delírios mágicos na mente de um pequenino camponês.
- Pai, o que é aquilo?
- É a Paixão de Cristo. - Severino sorri. – São pessoas que gostam de contar a história de Jesus. E Jesus Cristo está logo ali, numa cruz, morrendo para nos salvar.
Mãos dadas, atravessam a multidão de espectadores. Colocam-se bem à frente do ator crucificado, empanando os olhos do pequeno Zezinho, que deixam escapar duas lágrimas tímidas. Com as suas mãos apertando as mãos do pai, Zezinho abaixa a cabeça. Não que ver mais. Para que? E força a saída de ambos daquele local dramático.
De volta, Severino entra num bar para beber algo. Zezinho fica na porta, triste. Observa tudo à sua volta. Tudo à sua volta, para o Zezinho, não tem sentido.
- Um dia Ele vai voltar... – alguém no bar assegura.
- Ele já voltou, moço. – fala o Zezinho - Eu vi Ele lá em cima, pregado na cruz. E também vi muita gente perto dEle, olhando pra Ele. Mas não vi ninguém com vontade de salvar Ele. Tirar Ele daquela cruz. Tirar aquela cruz de lá...
Severino pagou o que bebeu, pegou na mão do Zezinho e pôs-se em retirada. O passeio não foi lá essas coisas ao menino, mas ele percebeu, na sua infinita ingenuidade, que poucas pessoas estariam dispostas a arrancar definitivamente a cruz de uma história chamada Vida,Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Que o sentido verdadeiro da Páscoa seja-nos de todos os dias.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

JOÃO E MARIA


O nome dele era João Inocêncio, aposentado, casado com dona Maria. Morava numa casa muito simples, alugada, ao pé de um morro. O quintal de sua casa, lembro-me bem, era rocha pura. Não havia terra, nenhuma planta, por menor que fosse, brotava atrás de sua casa. Em compensação, à entrada de sua residência, flores abundavam aos olhos de quem lhes visitassem. Dona Maria cuidava de inúmeros vasos, organizados às margens de um corredor que ligava a porta do muro à porta da moradia.
Bons tempos aqueles! Eu tinha pouca idade e também poucas responsabilidades. Minhas atividades resumiam-se em estudar e brincar. E me punha radiante quando meus pais decidiam visitar seus amigos João e Maria. Parece coisa de estória infantil, não? João e Maria... Mas como aqueles, esses nossos João e Maria lutaram a vida inteira contra as maldades da vida. Sempre em batalhas contra as “bruxas” que se instalam no destino da gente, para experimentarem se engordamos para o “tacho” ou se emagrecemos para a liberdade.
Dona Maria formou-se no Curso Normal. Era professora primária, mas nunca exerceu a profissão. Gostava de cuidar da casa e de seus bichinhos de estimação.
- Loro quer café! – era o papagaio que se manifestava sempre que via alguém estranho pela casa. E lá ia Dona Maria servir café para as visitas e para o Loro.
Eu gostava de brincar naquelas rochas, com as crianças da vizinhança. Recrutávamos a criatividade de cada um de nós. Fazer o quê naquele solo áspero e disforme? Pega-pega, de jeito nenhum. Futebol, nem pensar. Bicicleta? Qual!... Então, escolhíamos uma parte em declive e, soltando bolas, torcíamos para acertar algum alvo colocado mais a baixo. Na verdade, imitávamos um jogo de parque de diversões.
- Crianças, almoçar! – Dona Maria, devidamente equipada com avental e lenço na cabeça, fazia questão de ver crianças ao redor da sua mesa.
- É deles o Reino de Deus. – afirmava à minha mãe, enquanto servia nossos pratos. – Eu, sempre que posso, faço um almocinho para os meus vizinhos pequenos. Adoro vê-los saboreando minha comida, nem que seja arroz e feijão com um bifinho.
- Os pais deles não se importam?
- Que nada! Até agradecem. É muito raro ver um pedaço de carne no prato deles por aqui. São muito pobres.
Após o almoço, as crianças deixaram a casa de João e Maria. Eu me deitei no sofá da sala, já um tanto sonolento. E comecei a olhar as paredes do cômodo. Retratos, muitos, emoldurados, pendurados por todos os lados. Fotografias, muitas antigas, que registravam momentos da vida de João e Maria. Eu gostava, e ainda gosto, de ver cenas do antigamente. Imagens que me dizem coisas que não sei, de pessoas que não conheci. Mas que excitam minha imaginação e me fazem lembrar que hoje somos o resultado de pessoas que foram como nós, que nos deixaram legados insubstituíveis, por mais simples que sejam, por mais insignificantes que possam parecer, componentes da trajetória histórica de cada um. Por isso gosto de ler um livro muito antigo, sabendo que outras mãos e outros olhos pousaram naquelas palavras antes de mim. Essas sensações trazem-me um gosto gostoso de saudade, de imortalidade, de eternidade. Algo que nunca passa, que nunca morre, se considerarmos nossa consciência e memória como depositários de existências que aparentemente já partiram.
Percorrendo outros espaços das paredes daquela sala, encontrei alguma coisa estranha aos meus olhos. No centro da parede frontal à porta de entrada, um pano roxo cobria algum objeto. Fixei meu olhar para aquilo, mas não consegui identificar. Então, não resisti a minha eterna curiosidade, e perguntei:
- Seu João, o que é aquilo? – apontei.
O olhar do João seguiu a direção do meu indicador...
- É o Nosso Senhor Jesus Cristo.
- Por que Ele está coberto com um pano roxo?
- Porque hoje é sexta-feira santa, filho. – meu pai antecipava a resposta do João.
João pôs-se de pé. Colocou-se diante do Cristo coberto com pano roxo. Embebido de forte emoção, comentou:
- Jesus Cristo é o nosso Senhor, o nosso Mestre. Que sofreu muito por nós. Que morreu crucificado pelos pecados que nós cometemos. Se você percorrer as paredes da minha casa, verá alguns panos roxos pendurados nas paredes. E não porque hoje é sexta-feira santa. Éu e Maria não queremos mais vê-Lo preso a uma cruz. Acho que em quase dois mil anos Ele já sofreu muito por todos nós. Está na hora de pensarmos Nele com alegria, vendo-O sempre feliz. O sorriso Dele é a Luz que todos nós precisamos, não mais as suas lágrimas. Por isso mantenho os meus crucifixos cobertos.
Na minha pouca idade, não entendi bem o que ele quis dizer. E, na verdade, nem me preocupei com tudo aquilo, muito complexo para mim. Fechei os olhos e adormeci. Já estávamos no meio da tarde e no dia seguinte, com certeza, eu sairia às ruas para malhar o Judas.