GESTOS PERIGOSOS

quinta-feira, 2 de abril de 2009

JOÃO E MARIA


O nome dele era João Inocêncio, aposentado, casado com dona Maria. Morava numa casa muito simples, alugada, ao pé de um morro. O quintal de sua casa, lembro-me bem, era rocha pura. Não havia terra, nenhuma planta, por menor que fosse, brotava atrás de sua casa. Em compensação, à entrada de sua residência, flores abundavam aos olhos de quem lhes visitassem. Dona Maria cuidava de inúmeros vasos, organizados às margens de um corredor que ligava a porta do muro à porta da moradia.
Bons tempos aqueles! Eu tinha pouca idade e também poucas responsabilidades. Minhas atividades resumiam-se em estudar e brincar. E me punha radiante quando meus pais decidiam visitar seus amigos João e Maria. Parece coisa de estória infantil, não? João e Maria... Mas como aqueles, esses nossos João e Maria lutaram a vida inteira contra as maldades da vida. Sempre em batalhas contra as “bruxas” que se instalam no destino da gente, para experimentarem se engordamos para o “tacho” ou se emagrecemos para a liberdade.
Dona Maria formou-se no Curso Normal. Era professora primária, mas nunca exerceu a profissão. Gostava de cuidar da casa e de seus bichinhos de estimação.
- Loro quer café! – era o papagaio que se manifestava sempre que via alguém estranho pela casa. E lá ia Dona Maria servir café para as visitas e para o Loro.
Eu gostava de brincar naquelas rochas, com as crianças da vizinhança. Recrutávamos a criatividade de cada um de nós. Fazer o quê naquele solo áspero e disforme? Pega-pega, de jeito nenhum. Futebol, nem pensar. Bicicleta? Qual!... Então, escolhíamos uma parte em declive e, soltando bolas, torcíamos para acertar algum alvo colocado mais a baixo. Na verdade, imitávamos um jogo de parque de diversões.
- Crianças, almoçar! – Dona Maria, devidamente equipada com avental e lenço na cabeça, fazia questão de ver crianças ao redor da sua mesa.
- É deles o Reino de Deus. – afirmava à minha mãe, enquanto servia nossos pratos. – Eu, sempre que posso, faço um almocinho para os meus vizinhos pequenos. Adoro vê-los saboreando minha comida, nem que seja arroz e feijão com um bifinho.
- Os pais deles não se importam?
- Que nada! Até agradecem. É muito raro ver um pedaço de carne no prato deles por aqui. São muito pobres.
Após o almoço, as crianças deixaram a casa de João e Maria. Eu me deitei no sofá da sala, já um tanto sonolento. E comecei a olhar as paredes do cômodo. Retratos, muitos, emoldurados, pendurados por todos os lados. Fotografias, muitas antigas, que registravam momentos da vida de João e Maria. Eu gostava, e ainda gosto, de ver cenas do antigamente. Imagens que me dizem coisas que não sei, de pessoas que não conheci. Mas que excitam minha imaginação e me fazem lembrar que hoje somos o resultado de pessoas que foram como nós, que nos deixaram legados insubstituíveis, por mais simples que sejam, por mais insignificantes que possam parecer, componentes da trajetória histórica de cada um. Por isso gosto de ler um livro muito antigo, sabendo que outras mãos e outros olhos pousaram naquelas palavras antes de mim. Essas sensações trazem-me um gosto gostoso de saudade, de imortalidade, de eternidade. Algo que nunca passa, que nunca morre, se considerarmos nossa consciência e memória como depositários de existências que aparentemente já partiram.
Percorrendo outros espaços das paredes daquela sala, encontrei alguma coisa estranha aos meus olhos. No centro da parede frontal à porta de entrada, um pano roxo cobria algum objeto. Fixei meu olhar para aquilo, mas não consegui identificar. Então, não resisti a minha eterna curiosidade, e perguntei:
- Seu João, o que é aquilo? – apontei.
O olhar do João seguiu a direção do meu indicador...
- É o Nosso Senhor Jesus Cristo.
- Por que Ele está coberto com um pano roxo?
- Porque hoje é sexta-feira santa, filho. – meu pai antecipava a resposta do João.
João pôs-se de pé. Colocou-se diante do Cristo coberto com pano roxo. Embebido de forte emoção, comentou:
- Jesus Cristo é o nosso Senhor, o nosso Mestre. Que sofreu muito por nós. Que morreu crucificado pelos pecados que nós cometemos. Se você percorrer as paredes da minha casa, verá alguns panos roxos pendurados nas paredes. E não porque hoje é sexta-feira santa. Éu e Maria não queremos mais vê-Lo preso a uma cruz. Acho que em quase dois mil anos Ele já sofreu muito por todos nós. Está na hora de pensarmos Nele com alegria, vendo-O sempre feliz. O sorriso Dele é a Luz que todos nós precisamos, não mais as suas lágrimas. Por isso mantenho os meus crucifixos cobertos.
Na minha pouca idade, não entendi bem o que ele quis dizer. E, na verdade, nem me preocupei com tudo aquilo, muito complexo para mim. Fechei os olhos e adormeci. Já estávamos no meio da tarde e no dia seguinte, com certeza, eu sairia às ruas para malhar o Judas.

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