GESTOS PERIGOSOS

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O HOMEM QUE CONTAVA DINHEIRO


Conheci um homem, há alguns anos, que destinou sua vida a juntar dinheiro. Segundo parentes, desde de pequeno Justino guardava num cofrinho todos os tostões que conseguisse. Não os gastava, nem por necessidades. Não comia doces e outras guloseimas apreciadas pela criançada. Engolia a água na boca, pois sua satisfação se encerrava na economia que fizera ao não gastar com gulodices. Remédios? Comprava-os quando estritamente precisos, sempre com a ajuda de alguém. Queixava-se do mal que o afligia e dos poucos trocados que tinha para adquirir os medicamentos.
Jamais contava aos outros quanto tinha guardado. Segredo absoluto. Vestia-se mal, alimentava-se mal, enfim, vivia às custas de aparências próximas à miséria. Pobreza camuflada. E todos ao seu redor nutriam a mais profunda piedade do Justino, o que, vez ou outra, rendia-lhe doações de todos os tipos. Roupas, calçados, alimentos e até dinheiro, o que mais lhe interessava. Emprego? Trabalhava numa firma importadora como ajudante geral. Não estudou o quanto devia, para economizar. E do cofrinho da infância, Justino rendeu-se a uma conta bancária para guardar suas economias.
Sua residência, uma casa alugada na periferia da cidade, tinha apenas o suficiente para ele sobreviver. Um fogão, comprado de segunda mão. Uma geladeira muito antiga. Uma cadeira. Uma cama e um pequeno guarda-roupa, no qual ele acomodava roupas e mantimentos. Nada mais. Não precisava de muitas coisas, assim pensava, pois jamais recebeu ou receberia visitas. Podendo sempre economizar, tudo estava bem para Justino.
Uma das exigências de Justino para si mesmo era nunca se apaixonar. Mulher nenhuma haveria de dividir com ele seus bens monetários. Sempre que precisava aliviar-se nas necessidades fisiológicas, recorria ao prazer pago. E sempre o mais barato, para economizar. Jamais usou preservativos, uma vez que, no seu entender, era muito caro para apenas um minuto de satisfação. Desse modo, enchendo sua conta bancária de tostões e mais tostões, Justino considerava-se uma pessoa inteligente. Ia vivendo, embora à margem do mínimo conforto. O mais importante na vida, segundo a filosofia de Justino, era contar dinheiro. Como ele o fazia todas as noites, antes de dormir. Contar dinheiro era sua oração preferida. Adormecia no embalo do tilintar das moedas.
- Estou esperando um filho teu. – anunciou-lhe uma das prostitutas baratas da sua agenda de prazeres. – E eu não tenho como cuidar do menino.
Justino podia ser o maior avaro do mundo, mas irresponsável jamais. Sem atinar com as malandragens do submundo, registrou em seu nome o garoto, imediatamente ao seu nascimento: Justinho Júnior. Sem muito esforço, a mãe conseguiu o objetivo. Juntou seus trapos e mudou-se para a modesta casa do nosso contador de dinheiro. E começaram as exigências: novos móveis, roupas novas, geladeira fost free... Tudo em nome da boa educação para o Júnior. Aos poucos, Justino deixou de contar moedas todas as noites. Não sobrava muito para tanto. E teve que mexer na conta bancária, coisa que nunca o fizera desde sua abertura. Aos poucos... Teve um enfarto e morreu. A mãe do Júnior transformou-se numa dama. O filho abriu um cabaré. Mas, aos poucos, tudo voltou à forma antiga. E, aos poucos, a conta bancária do Justino cravou-se no déficit. Acabou o dinheiro... Acabou. Como o Justino, hoje acomodado num túmulo para indigentes.

sábado, 3 de outubro de 2009

A SEDUÇÃO DA CUECA AZUL


O que sabemos é que ele nasceu em Mitu, Colômbia. Como chegou à cidade de Tefé, no Brasil, ninguém sabe. Ele nunca falou sobre esse assunto. Deixava todos na dúvida entre fuga ou aventura. Veio para nossa terra já moço, com certo grau de estudos, o que não lhe dava à classe dos matutos. Trouxe poucas roupas numa mala surrada e coberta de barro, o que indicava caminhadas a pé pela mata amazônica antes de desembarcar em Tefé.
- Como é seu nome? – perguntou-lhe um posseiro que tinha uns servicinhos pro moço.
- Antonio. – respondeu-lhe de forma lacônica.
- Pois já vou dizendo pra você que não fui com a sua cara. Você tem cara de índio e eu não gosto dessa raça. Mas o serviço é seu.
Antonio, o colombiano, ficou em Tefé por três anos. Depois, pegando caronas, partiu para Porto Velho, em Rondônia. Já se sentia à vontade entre nossos patrícios. Conseguiu emprego numa empresa de transporte como ajudante de motorista. Trabalhava o dia todo e à noite passeava pelas ruas em busca de diversões. Algum tipo de jogo, caminhadas, danceterias, mulheres... E nesse particular, mulheres, Antonio não tinha muita sorte. Parecia não agradar ninguém, nem as raparigas de vida fácil.
- Estou na precisão. A moça está disponível? – argumentava Antonio. E na afirmativa da mulher, levava-a para algum hotel barato.
- Cueca vermelha? Que luxo! – ironizava a prostituta, o que na desmoralização apagava todo o ânimo do pobre Antonio.
Mais três anos fora da cidade natal e Antonio desceu pelo mapa do Brasil. Passou por Cuiabá – Mato Grosso, depois Campo Grande no Mato Grosso do Sul e finalmente desembarcou em Cubatão, no Estado de São Paulo. Alguém havia lhe dito que essa cidade estava prosperando industrialmente e que lá emprego seria fácil. Não foi bem assim. Suportou três meses de intensas procuras sem êxito. Sua sorte é que encontrou um colombiano que lhe ofereceu ajuda.
- Você mora comigo até arrumar trabalho. Não precisa pagar nada. Depois a gente se entende. – disse Héctor ao já amigo Antonio.
Antonio visitou a Refinaria Presidente Bernardes, a Cosipa, a Rhodia, Brasileira de Estireno... Enfim, andou pelas salas de entrevista das grandes indústrias da cidade. Nada! Desanimava quando, numa tarde cinzenta, Héctor anunciou com largo sorriso colombiano:
- Estás empregado, amigo!
Antônio não dormiu naquela noite. Ansiedade e nervosismo alimentaram a insônia. Às cinco da manhã, levantou-se e tomou demorado banho. Vestiu-se com a melhor roupa e empapou-se com o perfume do amigo Héctor. Às sete horas em ponto estava no hall de entrada da empresa Passo Largo de Transportes.
- Bom dia. Antonio o seu nome, não? Sou a proprietária desta companhia e já vou adiantando: não gosto de intimidades, não fui com a sua cara de índio, mas o trabalho é seu.
Essas palavras Antônio já tinha ouvido há alguns anos. Não lhe incomodavam. O problema maior era a proprietária Marisa. Mulher maravilhosa. Corpo escultural. Ruiva natural. Pobre Antonio, há longo tempo sem tocar num corpo feminino...
Passados alguns meses, a proprietária Marisa deu a Antonio uma camiseta de presente. No aniversário dele.
- Quero que experimente a camiseta ainda hoje, seu Antonio. Se não servir, eu troco.
Assim que Marisa saiu da sala, Antonio fechou a porta e rapidamente pôs-se a vestir a camiseta. Para ajeitá-la melhor no corpo, arriou as calças e...
- Caso o senhor... – Marisa abriu a porta surpreendendo o Antonio com as calças abaixadas. E prosseguiu: - Caso o senhor não goste da estampa, me avise. E fechou a porta com rispidez. Uma semana passou sem que Marisa tocasse no assunto. Nem Antonio. Temia perder o emprego. Até que...
- Bonita aquela sua cueca azul, seu Antonio. – disse-lhe ela com sensualismo.
- Gostou? Comprei meia dúzia delas. Hoje, por exemplo, estou vestindo uma... Quer ver? – arriscou o Antonio. Ou tudo ou nada.
- O senhor me mostra, seu Antonio? – Marisa derrubava todas as suas guardas.
- É pra já, dona Marisa!
Dizem que a Marisa não suportou ver Antonio com as calças arriadas mostrando a tal cueca azul. E que se atirou sobre ele sufocando-o com um beijo luxuriante e demorado. E que a partir desse momento tudo mudou na vida do colombiano. Ficou bem de vida como sócio na empresa Passo Largo. É considerado, até hoje, como o maior colecionador de cuecas azuis do planeta. Acho que até está no Guinness. Seria o caso de se conferir.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

UM MINUTINHO....


Mal estar na altura do estômago. Queimação. Gastrite? Talvez a salada com muito vinagre... Não, gastrite não era. Uma dor misturada com ansiedade irrompia no peito. Súbita. E aumentava assustadoramente. A ponto de espalhar-se pelo tórax e abraçar as costas. Pensou em tomar alguma coisa para conter a dor. Enfarto? Náuseas, tonteiras. Pôs-se de pé, rápido. Lembrou-se de um amigo que teve a mesma coisa. Mas sobreviveu pelo atendimento rápido do seu médico. E de um caso que lhe foi contado na hora do almoço. Um sujeito que teve dores horríveis no peito, foi socorrido e nada de grave. Gases pressionavam o abdômen e a dor apareceu. No caso dele, a coisa era grave. A urgência fazia-se urgente. Mal e mal caminhou até o telefone. Na agenda, o número do seu cardiologista. Com extrema dificuldade, mal podendo respirar, discou para o consultório do médico. E, graças a Deus, a recepcionista atendeu...
- Um minutinho... – disse a moça e soltou música eletrônica de espera.
Fim de semana prolongado. Loucura de êxodo. Todo mundo deixa a sua cidade para saborear visitas. Rever parentes, amigos, lugares... Malas e bolsas coloridas corriam de um lado para outro em busca do transporte. Falatório de terminal rodoviário, risos de aventuras... Tudo muito gostoso, mas o último ônibus da noite estava de partida. Era preciso ser rápido para conseguir embarcar. Caso contrário, teria de ficar até às 7 da manhã quando sairia o primeiro do outro dia. A lenta fila gerava preocupação. Felizmente, chegou-lhe a vez. O tempo certo de comprar a passagem, correr e embarcar no ônibus.
- Um minutinho... – disse a moça e deixou o guichê rumo ao toalete.
Fila de banco todo mundo sabe como é. Gigantesca quase sempre. Exercício de paciência. As fisionomias mostram a insatisfação da demora. Mas, o que fazer? Último dia para pagamento do boleto. Se deixasse para pagar depois, a multa desencorajaria qualquer bolso. O jeito era manter-se ali e aguardar a sua vez. Aproveitar e ler as propagandas do banco. Se você empregar tanto, pode ser sorteado com um carro todos os dias. Ou uma casa por mês... Dentro de um banco, você tem mil oportunidades para comprar a felicidade, não é mesmo? Entretanto, o problema surgia através da dor de barriga que anunciava necessidades fisiológicas. Faltavam somente três pessoas. Com um pouco de sorte, daria tempo de pagar a conta e voar para o primeiro banheiro à disposição. E, mais uma vez graças a Deus, a sorte o amparou. Chegou ao caixa com muita fé.
- Um minutinho... – disse o moço e retirou-se para atender o telefone.
Quer mais? Ele estava com 85. Ela, 80. Dali a três dias completariam 50 de casados. Bodas de ouro. Uma história feliz de convivência feliz. Do dia-a-dia em comunhão. Amor infinito. A comemoração deveria ser primorosa. Como nos velhos tempos. O problema era que há mais de dois anos ele não tinha ereção. Em tempo algum. Então, resolveu procurar o seu geriatra. Pediu ao médico o milagre para a consagração da festa. Viagra não resolveria a questão. Mas o doutor, experiente nas vicissitudes da idade, receitou-lhe uma fórmula para ser manipulada. Remédio porrete, mas que tinha efeitos efêmeros. O ato deveria acontecer tão logo a coisa começasse a acontecer. E chegou o dia, a hora. Beijos daqui, abraços dali... Um carinho atrás do outro... Não contou nada a ela. Escondido, tomou o remédio. A falsa imagem de virilidade. De repente, a tal fórmula mostrou o porquê da sua eficiência. E ele não poderia demorar. Agarrou-se nela como um garanhão em pleno cio. Ela, devido a pouca esperança, nem havia tomado banho. Com certa dificuldade, soltou-se dele...
- Um minutinho... – e abandonou-o na cama rumo ao chuveiro.
Ah, mas o fato mais marcante, o exemplo mais positivo, ainda estou por contar. Esse vai deixar cada leitor vibrante de emoção. Algo jamais visto, jamais pensado. Querem conhecer? Ótimo! Mas antes...
- Um minutinho...

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Moleskine, você conhece?



Eu faço anotações em pedaços de papel. Confesso, sou um tanto desorganizado para registrar coisas e fatos do dia-a-dia. Manter um diário, nunca! Nem tentei em toda a vida. Entretanto, há quem dedique parte do tempo de cada dia para anotar a sua história de cada dia. Como ganhar o pão, aquele de cada dia.
Bruce Chatwin (1940 – 1989), escritor inglês, viajava muito. Colhia, nessas jornadas, fatos históricos dos lugares por onde passava. Entrevistou muitas personalidades, que colaboravam para sua coleção de histórias. Esse acervo cultivado ao longo de alguns anos, ao longo das viagens, acabou fornecendo material para dois livros: O Rastro dos Cantos, que fala sobre música aborígine, e In Patagonia, uma espécie de relatório sobre a selvagem América do Sul.
Na verdade, Bruce era um metódico colecionador de histórias e relatos de boa parte do mundo. Tinha o hábito de investigar, de pesquisar e de registrar tudo num peculiar livreto de anotações. Moleskine é o nome desse livreto. Pequeno, muito prático, com folhas duráveis bem presas e amarradas por um elástico. Por seu porte pequeno, pode ser levado nos bolsos do casaco ou do paletó, o que o torna companheiro dos artistas em geral. É claro que quando Bruce o conheceu, apaixonando-se por ele, esse livreto já era um clássico.
Moleskine, na penumbra da história, gerou lendas em torno de si. Há citações de que artistas das mais variadas classes utilizavam essa espécie de caderninho para anotarem a evolução de suas produções. É possível que Ernest Hemingway (1899 – 1961), Pablo Picasso (1881 – 1973), Henri Matisse (1869 – 1954) tenham possuído moleskines para suas anotações, embora nada comprovado. Dizem até que Hemingway tenha escrito suas crônicas de Paris, nos anos 20, quando freqüentava vários cafés daquela cidade. Conta-nos algumas lendas que ele tirava seu moleskine e um lápis do bolso e começava a escrever naquelas páginas tão inspiradoras. Confirmado, Vincent Van Gogh (1853 – 1890) usou esse tipo de livreto, pois em 2002, em Amsterdam, seus moleskines foram expostos à visitação pública.
Durante dois séculos o moleskine foi o caderno legendário de intelectuais e de viajantes. Sua produção foi interrompida em 1986 com a morte do seu fabricante. Mas, com a iniciativa da produtora italiana de marca Modo & Modo, o charmoso caderninho voltou às prateleiras de vendas logo no início do nosso século. É claro que hoje, com a Informática ao nosso dispor, escrever a mão é coisa do passado. O moleskine é "um sopro de romantismo e descrição". Mas não duvidem se, em médio prazo, estaremos vendo nas mãos de artistas e intelectuais o famoso moleskine, num resgate interessante dessa moda européia, a despeito da atual tecnologia.
Roberto Villani

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A LENDA DO BAILE DE NOIVADO


A Rua Principal foi tomada por nevoeiro londrino de Jack. Mal se podiam ver os paralelepípedos incrustados no chão a título de leito carroçável. Início de noite. Ninguém nas redondezas. Alguns vislumbres de luz surgiam de algumas janelas ao longo da via. Cenário lúgubre. Descolorido. Destacavam-se, tênues, as auras nas luminárias a gás penduradas nos postes de ferro. Ninguém a vista. Nenhum animal por perto. Um pio de ave noturna propagou-se discreto no ar.
Algumas pessoas saíram à porta do casario amarelo. Vestidas a rigor, as moças esboçavam alegria incontida. Os rapazes, em seus vistosos ternos, animavam-se entre expectativa e sorrisos femininos. Quebravam, com a euforia, o ambiente soturno daquele cenário. Todos fixavam o olhar à esquerda da via. Esperavam alguém muito importante.
Súbito, ruídos vindos da esquerda aliavam-se a surda algazarra dos jovens à porta. E rasgavam o silêncio do lugar. Tropel de cavalos anunciava a aproximação da carruagem tão esperada. A parelha eqüina, imponente, parou diante de todos. Muitos se aproximaram do veículo. E aplaudiram o casal Marcel e Marguerite que deixavam o coche. Beijos, abraços, cumprimentos de mãos fortes, palmas... A turba acompanhou o jovem casal para o interior da casa amarela. E não notaram, na saída da carruagem, um vulto oculto nas sombras da noite, que observava cada movimento na calçada à frente.
A sala principal da bela casa fora construída com suntuosidade. Iluminada por lindíssimos candelabros sabiamente colocados sobre colunas à encosta das paredes. Entremeados com sofás e poltronas estilo Luis XVI, o que oferecia aspecto clássico e rico ao ambiente. Nas paredes, além de vidraças e portas de imensa riqueza, grandes pinturas retratando homens e mulheres da nobreza formavam majestoso porta-retrato familiar. Num dos cantos da sala, alguns músicos – instrumentos de corda, aliciavam casais para o baile. Petiscos e licores passavam em bandejas de prata nas mãos de garçons trajados com uniforme de gala. A alegria era esfuziante. O bem estar, instalado em cada coração presente, fazia do amor a força mestra do calor humano daqueles momentos.
- Um viva aos noivos Marcel e Marguerite! – alguém se manifestou. A música deu trégua, os casais formaram um círculo em torno dos noivos e algumas palavras, após o “viva!”, foram ditas pelos jovens casadoiros e por convidados.
- Eu agradeço todo o carinho que vocês nos oferecem, meus amigos. Este baile de noivado haverá de se perpetuar pelos séculos em nome do nosso indestrutível amor. – disse Marcel beijando Marguerite, sob os aplausos efusivos da platéia em círculo.
O tal vulto, até então escondido na despreocupação dos presentes, invadiu o ambiente enquanto todos se reuniam no centro da sala. Ninguém o viu esgueirar-se ao longo das paredes. Trajava chapéu e pesada capa preta, que lhe ocultavam o rosto e o corpo. Encostou-se próximo aos músicos, sem ser visto por ninguém; parecia esperar momento oportuno para agir. Dali pode ver e ouvir veementes discursos, todos de exaltação aos noivos e àquela memorável ocasião.
- Que retorne a música e a dança! – comandou Marcel. E o baile prosseguiu.
Após algum tempo, o tal homem aflorou de seu sinistro comportamento e colocou-se diante dos músicos.
- Um momento! – disse em tom ríspido. E continuou sob o espanto de todos, agora postados diante de si. – Este noivado não tem sentido. Ela declarava amor por mim por toda a vida. – Um dos presentes quis investir contra o homem, mas Marcel o impediu. – Esse canalha, Marcel, a seduziu com sua riqueza, com sua nobreza... Ele a roubou de mim! – concluiu e, enfurecido, sacou da cintura a espada oculta pela capa e avançou insano sobre Marcel. O horror instalou-se na sala. E a espada transpassou o peito do jovem noivo. Enquanto muitos tentavam socorrer Marcel, o assassino desaparecia na escuridão da Rua Principal.
A manhã chegou com a dissipação do nevoeiro pelo sol. A Rua Principal atualizou-se, mostrando prédios de apartamentos e edifícios empresariais. O asfalto lotava-se de carros, ônibus, caminhões... Trânsito pesado e complicado. Num apartamento do prédio construído no mesmo lugar do casario amarelo, algumas pessoas aglomeravam-se em seus cômodos. Legistas, policiais, parentes e jornalistas observavam atentos o corpo inanimado de um jovem caído no centro da sala.
- Sabe o nome dele? – perguntou um repórter ao outro.
- Marcel, eu acho.
- Como ele morreu, você sabe?
- O legista disse que foi assassinado. Uma longa lâmina, que eles ainda não identificaram, transpassou o peito do coitado.
- Alguém suspeito?
- Ninguém...
Uma lenda: o destino cruel de um jovem e o ciúme descontrolado de um amante inconformado. A cada cem anos, no dia e no mês da ocorrência, um baile de noivado é realizado nas trevas do inconcebível. Elaborado pela magia da imaginação humana. E alguém chamado Marcel morre, interrompendo um romance perpetuado pelos séculos em nome de indestrutível amor.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

POEMA DE UM LOUCO


Rodo pelo salão das minhas quimeras. Acendo as luzes da minha imaginação. Olho-me no espelho da ilusão. Vejo-me radiante, vestido com traje a rigor. Um tango espalha sons pelos quatro cantos. Ecoa pelas paredes incandescentes da minha euforia íntima. Quero, neste momento, dançar um grande sonho de amor.
Clamo aos meus sentidos as sensações próprias dos meus objetivos. O ritmo é tão quente que não consigo parar os meus pés. Minhas pernas. Esboço, então, os primeiros passos, ainda solitários. Minha mente extravasa emoções tantas que sinto vontade de rir e de chorar enquanto imagens transpassam minha pele, minha carne, minh´alma. Estendo a mão ao nada, a ninguém. Impaciente, rogo aos deuses da esperança a chance de encontrar-me. Confesso que estou um tanto perdido nesta casa das memórias. Cabeça de um corpo que ainda não despertou para o delírio.
Meus olhos, antes transparentes, põem-se insondáveis como defesa plena da minha incredulidade ao sonhar, de amar. Por onde andaria, neste momento, o meu coração? No meu peito já não bate, pois se acomodou no âmago daquela que o roubou de mim. Triste fim de um sonhador romântico que jaz aos pés do fracasso.
Mas eis que, num vislumbre da mente que desperta, num repente mágico de solução irreal, minha dama surge como deusa sempre esperada. Estende-me as mãos e num sorriso devolve-me por momentos a graça da vida. Trago-a de encontro a mim e, ao contato de seu corpo inteiro, renasce em minhas entranhas o vigor de jovens tempos. Quero embeber-me do perfume que exala das rosas incrustadas em seus cabelos. Quero compor os mais lindos poemas que, etéreos, transformam em luzes as palavras do meu platônico amor. Sorvo em seus lábios o mel que me põe louco. Que me fez louco. Que me faz louco.
Entrelaço com as minhas as longas pernas da minha escultura infinita. Giro ao longo de sua cintura. Minha mão corre por entre suas curvas, pleno prazer de tê-la minha, somente minha. O calor de sua pele aquece meus pensamentos antes frios, sombrios. Bebo o néctar da gratidão. O tango arrasta-me à fantasia do êxtase. A imagem dela apaga-me o pranto contido. Sou feliz pela eternidade daquele instante.
Contornos ritmados, dançamos ao sabor de algo que nunca acabará. É assim que desejo. É assim que me sinto neste imenso salão de quimeras. É assim que me exponho ao medo de que tudo termine como sempre. O fim que me leva à realidade. Realidade que me consome a esperança de tê-la de volta. Insanidade... Quando o tango parar, acabar... Quando tudo se desfizer, inconseqüente desfecho de um poema de amor escrito numa página do diário de um louco...

domingo, 30 de agosto de 2009

MOMENTOS ROMÂNTICOS

Amor, carinho, dedicação, palavras que, por si só, contam grandes histórias. Palavras apaixonadas, canções românticas, lições fraternas que se prolongam pela vida. Quem ainda não amou? Quem nunca se dispôs a enveredar seus passos nos caminhos de outrem? Se criança, seguir nos rastros dos pais. Se jovem, dançar no compasso de paixões adolescentes. Se maduros, acampar no carinho de alguém muito especial. “Infeliz daquele que passou pela vida sem sentir dor de amor”, alguém já disse.
O romantismo, não o literário, mas aquele que existe dentro do ser humano, parece-me mais uma espécie em extinção. Marcante ainda nas músicas sertanejas e nas chamadas bregas, e, principalmente, na poesia, o verdadeiro sentimento romântico resiste no comportamento de algumas pessoas, não como modismo, mas como índole. Flores, jantar à luz de velas, abraços e beijos sob o luar (e inspirados na luz da lua), poemas dedicados etc, ainda se vê por aí, já não tão freqüentes. Observamos essas coisas como jóias raras de um tempo antigo. E, às vezes nostálgicos, ainda somos obrigados a ouvir chalaças, como “Isso já era!”, “Fora de moda!”, “Dá licença, mas tô fora!”... É uma pena, pois na época das serenatas, quando pegar na mão da namorada era verdadeira conquista masculina, os casais podiam passear pelas calçadas do mundo sem pavor do assédio dos marginais. Os grandes artífices do medo faziam-se os pais das moças, no controle vigoroso da honra de suas filhas casadoiras.
Eu sempre percorro, pela Internet, páginas românticas dedicadas à poesia. Como a Home Page da poetisa Fátima Irene (www.fatimairene.com), que, numa mistura mágica de imagem, som e palavras, transporta românticos ao cantinho aconchegante dos poemas de amor, de carinho, de dedicação.
Conheço um lugar em Descalvado que considero propício a momentos românticos. Refiro-me à Churrascaria Cabana, ali na Praça da Matriz. Há muitos anos freqüento esse restaurante, com minha família. Lembro-me do tempo no qual o atencioso José (o Zé) servia nossa mesa com Filé à Parmezziana e Filé à Cubana, pratos preferidos por todos nós. Tempos românticos aqueles, registrados nos espaços do Cabana, supervisionados pelo Pinho, e gravados em minha memória saudosista. Até hoje, toda vez que entro nesse local, revendo, lá, o Pinho e o Zé pelo salão, renasce a saudade de dias inesquecíveis marcados pelo sabor do filé à cubana e pelas graças do saudoso Joaquim, jovem ator do meu teatro TERV daquele tempo. Prova disso é este teimoso nó em minha garganta, que embargaria minha voz se tivesse que narrar esta história, mas dá forças e inspiração às minhas mãos neste teclado que, embora longe do romantismo das máquinas de escrever, existe para que eu possa transportar a todos vocês a emoção que me envolve agora, enquanto escrevo.
Noutro dia, um domingo, voltamos ao Cabana, eu e Rosária. Preparamos nossos pratos e sentamos. E mais uma vez tivemos o prazer da presença simpática do Zé:
- Uma cerveja? – perguntou, apertando-me a mão.
Passados alguns minutos, um idoso casal entrou no salão do restaurante. Cabelos totalmente brancos, andar compassado, personagens de estória antiga, seres que se apresentam de passagem aos nossos rumos para encantar nossas vidas. Eu e minha esposa os acompanhamos com olhar disfarçado. Ele chegou primeiro à mesa e, num ato de autêntico romantismo, puxou a cadeira, cavalheiro hoje somente em histórias de autores imortais. Ela pousou seu prato sobre a mesa e, cadeira ajeitada por ele, sentou-se como verdadeira senhora de alta corte. Ele, gestos elegantes, com um leve sorriso, marca indelével de amor que nunca acaba, voltou-se à cadeira oposta e, então, almoçaram. Não sabemos os nomes deles. Mas podemos afirmar que, naquele momento romântico, eles nos ofereceram o encanto de imagens fascinantes, gravadas somente na lembrança daqueles que verdadeiramente podem dizer “te amo!” pela vida toda.
Saímos do Cabana de braço dado. Nossos momentos, por instantes, foram acariciados por pensamentos poéticos, por emoções há muito não vividas. Entramos no carro e rumamos à cidade de Santa Rita do Passa Quatro, passear, jogar conversa fora e tomar sorvete no Palácio do Sorvete daquela cidade. Pode ser coisa brega, fora de moda, mas com o gosto gostoso do verdadeiro romance. Como antigamente fazíamos. Lições que nos ensinaram a fórmula simples para sermos felizes.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

RECEITA PARA HOJE


Acredite, decidi e ponto final. O que me prejudicou ontem não será lembrado hoje. Não quero arrastar coisas ruins do passado para o presente. O passado é imutável, não posso alterá-lo para corrigir meus erros. Mas hoje ainda é tempo para mudar algumas coisas. Do antigamente só quero lembrar do que me fez feliz. Daquilo tudo que me trouxe alegrias e doces emoções. Como tenho que construir cada dia, usarei a matéria-prima que conquisto hoje. Porque ontem é história e hoje...
Também não tentarei preparar o futuro como dever obrigatório do presente. E nem tenho como construir o amanhã de forma pragmática. Se uso meu tempo para buscar o melhor para amanhã, não terei tempo para realizar todos os projetos de hoje. E de uma coisa tenho certeza: na melhor construção do hoje está a melhor proposta para o amanhã.
Ajeitarei o espelho e nele colocarei minha imagem. Para início da minha motivação diária, devo me ver como alguém competente, que merece todo meu respeito. Admirarei aquele no espelho. O primeiro amigo, a quem hei de procurar, dia a dia, conhecer melhor. É assim que começarei cada manhã.
Tenho que acreditar que o dia de hoje é o mais importante da minha vida. Tenho que cuidá-lo como presente divino, único, mas compartilhável. Ele me pertence e, por essa razão, devo valorizá-lo. Permitir que meus semelhantes participem dele com alegria e satisfação. Em cada meu dia, a felicidade dos que me cercam será a inspiração da minha alegria. Essa a minha maior responsabilidade. Devo, então, viabilizar minhas jornadas sem obstáculos, removendo os empecilhos com sabedoria para que meus parceiros não sofram conseqüências dos meus eventuais descuidos. Nos meus dias habitam todos aqueles que me amam. E eu sou responsável por isso.
Nada haverá de me fazer desistir. Os obstáculos de cada dia são naturais, provas que enfrento para capacitar-me à evolução. Devo viver cada momento com determinação, com coragem. O meu grande objetivo é o meu crescimento, que depende somente de mim, das minhas ações, da minha capacidade de escolhas. Jamais perderei a esperança por piores que sejam as circunstâncias.
Compreendi definitivamente que sou responsável pela minha felicidade. Ninguém pode fazer por mim aquilo que eu não me esforce para conquistar. Portanto, neste dia, buscarei a felicidade como a mais importante obrigação da vida. E nas coisas mais simples do meu cotidiano encontrarei os objetos da felicidade. O contato com a Natureza, o animal de estimação, o sorriso dos amigos, o beijo de nossos entes mais queridos... Observar com carinho a nova flor no meu jardim, a nova canção do meu artista, o desenho, às vezes sem graça, da menininha, do menininho... O novo penteado da esposa... A gostosa gargalhada banguela do bebê, na casa vizinha... O abanar estabanado do meu cãozinho tão querido... Puxa, quanta coisa eu tenho hoje para ser feliz!
Acredite, decidi e ponto final. O que me prejudicou ontem não será lembrado hoje. Por isso, criei a receita que exponho por estas linhas. Para o dia de hoje. Se alguém que me lê quiser copiá-la, eu autorizo com muita alegria. Afinal, vocês, meus leitores, compartilham comigo os meus dias, na certeza de que eu faço o mesmo nos dias de cada um de vocês. Então, por que não buscarmos, nas coisas mais simples que nos cercam, a felicidade do dia-a-dia?

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

A MORTE DA ARANHA


Manhã descolorida, diria cinzenta. Nem os pardais, que todos os dias promovem algazarra no pé de acerola encostado na janela do meu quarto, apareceram parceiros do meu despertar. Coisa choça, sem graça. Gosto acre, sabor de nada. Quando acordamos de sono profundo e perguntamos a nós mesmos: que foi feito da noite? Profecia indesejada de algo ruim. Acordar proibido. Sem sentido, sem motivo, sem ´mea culpa´.
Movimentava-me lento, preguiçoso, tonto, arrastando o chinelo até o banheiro. Nostalgia inoportuna agarrava-me o peito. Saudade maluca, inexplicável, invadia os meus pensamentos. Não me sentia bem. Larguei-me sob o chuveiro e tentei fazer da água morna uma forma de relaxamento. Os minutos passavam e eu reclamava dos ponteiros, dos dígitos... Achei que o digital andava mais rápido que o análogo. Bobagem minha. Na verdade, tudo andava mais rápido que eu.
- O café está na mesa. Vai demorar? – anunciou Rosária.
Glicemia a 182. Pressão arterial a 16 por 12. Com certeza, bateria baixa. Carência de energia. Falta de combustível. Conquistava, então, uma certeza: eu precisava comer! Fazer exatamente o que a proprietária da teia (que a faxineira não viu) fazia no canto da parede. A pequenina aranha demonstrava apetite, coisa que não ocorria comigo. Eu parecia preso numa gigantesca teia. Dificuldade para me locomover... E comecei a pensar nelas, nas aranhas. Veja, o corpo das aranhas é formado por dois segmentos, diferente dos insetos que possuem três. Tem uma estrutura rígida, revestida por um exoesqueleto. Elas têm oito pernas. Aí, perguntei-me: pra que tantas, não é? E nova pergunta me fiz: que coisa besta é essa de ficar pensando em aranhas? Meu tempo estava passando por mim sem que eu o acompanhasse?
Enfim, deglutir era necessário... E rápido, porque o tempo, como já afirmei, passava sem dó da minha indolência. Engoli o básico. Tomei os remédios de todo o dia, beijei a Rosária e pus-me porta à fora. Cheguei no trabalho no horário. Minha sala já estava aberta. O café na garrafa térmica a postos no seu local de costume. Encostei meu laptop na parede, acomodado no chão. E sentei-me ainda bastante sonolento.
- Seu Roberto, venha ver uma coisa. – o Gaspar, meu companheiro de trabalho, pedia a minha presença. Ele estava parado, no meio do salão de eventos. Apontava-me a parede à nossa frente. E lá estava a razão do seu chamado. Uma enorme aranha preta, bem no meio da parede. Aproximadamente dez centímetros de diâmetro, a partir da extremidade de suas pernas. Imagem assustadora e, ao mesmo tempo, obra de arte da Natureza. Estava estática, talvez temendo por nossa presença. Quem sabe, pronta para atacar. Não sei se era o caso daquela, mas há algumas que saltam em cima da gente. E eu temia um contra-atraque inesperado. Quem sabe, era exatamente a teia daquela ali que me segurava desde que despertei naquela manhã cinzenta.
O Gaspar sumiu de repente e de repente voltou. Trazia um inseticida spray decidido a enfrentar o bicho.
- Gaspar, aranha não é inseto. Aranha pertence à família dos Arachnida. É parente dos escorpiões, dos carrapatos e dos ácaros... – o Gaspar não deu importância ao que eu lhe dizia e lançou a primeira lufada venenosa sobre a inimiga.
- Gaspar, isso não vai adiantar. É capaz de irritar a bichinha e ela nos atacar...
A ação do Gaspar foi devastadora. A aranha tentou movimentar-se pela parede, mas não conseguiu; despencou. Gaspar descarregou a vaporosa munição sobre a vítima do nosso pavor. No chão, ela deu várias cambalhotas e procurou andar. Com dificuldade, arrastou-se em minha direção. Fiquei inerte. Não saí do lugar. Viria pedir-me socorro? Mas no meio do caminho ela parou. Contorceu-se, mais uma ou duas cambalhotas e esticou para cima as oito pernas, visão que me perturbou. A morte é patética. Não é um espetáculo para se ver, como fazíamos eu e o Gaspar naquele momento. Ali parados, sinistros, silentes. Depois de instantes, ela se encolheu toda, juntando todas as pernas ao seu corpo. E morreu.
Enquanto o Gaspar, com uma vassoura, levava a aranha morta para fora do salão, eu retornei à minha sala. Sentimento mórbido atacou-me como veneno aos meus pensamentos. Sem sentido, sem motivo, com ´mea culpa´. Uma vida fora roubada à Natureza sem que eu fizesse algo para impedir... A morte daquela aranha mostrou-me a fragilidade da vida. E o que é indiferença. Somos muito pequenos diante do poder que temos, mas não dominamos. Com sprays que lançam vapores, balas, lâminas afiadas, bombas etc, destruímos o que construímos. É a lei do ser mais inteligente do planeta, o que fazer?
O telefone tocou.
- Meu bem, você nem imagina! A orquídea branca está cheinha de botões... – a Rosária colocava um raio de luz no sol do meu céu, agora nem tanto cinzento.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

PAI, ONDE ESTA VOCE?


Ponho-me à janela dos meus setenta anos. É noite. A insônia faz-me vigilante da madrugada. Percorro, com o olhar, as vias da vida que, adormecida, me representa pouco neste momento. Tenho saudades. Falta-me o ombro no qual me apoiei por muitos anos.
Como é linda a noite do céu. Espetáculo iluminado por milhares de luzes multicoloridas. Lá está o Cruzeiro do Sul... As Três Marias...Tenho admiração pelo universo. Freqüentemente, a bordo da minha imaginação, viajo entre as galáxias. Percorro planetas e estrelas como andarilho do infinito. Acomodo-me em satélites mesmo os desconhecidos. Aspiro o nada do vácuo eterno. É assim que minha mente traduz a fantasia que me envolve. Como um ser etéreo, síntese de tudo que a alma encerra. Um ser distante, empurrado pela nostalgia latente no meu peito. Como coisa sem nome a espera de novo batismo, essencial para ver você novamente, pai.
- Pai, onde está você?
Meus olhos acompanham, lá embaixo, a rua deserta, semi adormecida. Pais e filhos, neste instante de noite, recolhem-se aos sonhos mútuos. Cúmplices em campanhas comprometidas com o amanhecer de um novo dia. Não há carros nas vias. Não ocorrem movimentos nas calçadas. Apenas um supor melodramático de ensaios da morte, o sono, não o sonhar. Porque há vida no quarteirão da minha rua. Só e eqüidistante do privilégio de estar com você, pai, cultivo a inveja daqueles que, lado a lado, possuem o maior amigo de todo o sempre.
- Pai, onde está você?
Retorno ao interior dos meus aposentos. Recorro às prateleiras do meu conhecimento. Livros de histórias... Busco nas páginas amareladas das minhas recordações alguma sensação de encontro. Alguma idéia mágica, misteriosa, que me proporcione o aperto de mão que me falta. O velho olhar que ilumine meus caminhos finais. Não quero partir sem ver você, pai, mais uma vez. Preciso da sua força que me fazia enfrentar todos os moinhos de vento da minha insegurança. E me propunha a vitória em seu nome, como guardião dos meus sentimentos.
- Pai, onde está você?
Deixe-me abraçá-lo como nunca o fiz, meu velho. Agradecer, pessoalmente, todos os momentos que você dedicou ao meu conforto. Darmo-nos alguns minutos de conversa, como o fizemos algumas vezes no passado. Falar do Palmeiras - lembra? - continuando aquele bate-papo interrompido com sua inesperada partida.
- Pai, onde está você?
Permita-me apresentar a você meus filhos adultos. E meus netos nascidos também de você, pai. Permita-me dizer que o amo, não importa onde você esteja. Quero dizer que sinto muito pelo atraso do meu amor pleno. Quero dizer que a minha gratidão, pelo que você me fez e pelo que sou, há de se perpetuar no universo das nossas histórias. Onde eu sei que você está agora e estará para todo o sempre.

A todos os pais. E que os filhos os cultuem enquanto vivos, enquanto presentes.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

DEIXE SECAR A RAIVA


Tinha lá meus quinze anos. Adorava jogar futebol. Passava tardes inteiras batendo bola nas areias das praias de Santos. Aos sábados, quando compromissos com os estudos davam chances ao entretenimento. Desculpem, mas gosto de relembrar esse tempo de ser feliz sem responsabilidades maiores. Uma bola, um grupo de jovens dispostos e uma, duas, três partidas ao longo das horas.
- Mais uma? A melhor de três. Quem ganhar é o campeão deste sábado...
Até o João Folganes participava dessas chamadas peladas. Era o mais velho de todos. Tinha idade para ser pai de alguns de nós. Mas tinha a voluntariedade de um jovem irmão. Meu vizinho. Meu amigo. Meu conselheiro. As dúvidas que a vergonha impedia-me de recorrer ao meu pai, o João me explicava. Interessante, não tinha filhos. Talvez por isso, era tão ligado ao nosso grupo de jovens.
- Estou com idéia de fundar um time de futebol. O que você acha? – disse-me um dia. Sua idéia firmava-se no aproveitamento daqueles que, aos sábados, riscavam nas areias das praias do litoral os dribles, os tombos, os cruzamentos... Os saltos dos goleiros... Marcas da alegria que a bola trouxe aos povos de várias partes do mundo. Formas de amor coletivo, explícitas nas arquibancadas dos estádios que se construíram como Coliseus para vinte e dois gladiadores da era moderna.
Goiás Futebol Clube. Em razão do nome da rua na qual a maioria morava. Camisas verdes e calções brancos. Lembro-me de alguns: Juca Silva, Peixinho, Carlos Preto... Ah, Dona Rosa, que saudades! Negra que esbanjava simpatia. Mãe do Carlos Preto. Morava numa casa de madeira, quase um barraco. Na chamada Ilha Maldita, um reduto afavelado que interrompia a rua Vahia de Abreu, em pleno Gonzaga de Santos. Lavava roupa pra sobreviver. Com sorriso pleno, incumbiu-se de lavar semanalmente o uniforme do Goiás Futebol Clube.
A maneira de lavar roupas de Dona Rosa chamava a atenção daqueles que a conheciam. As peças encharcadas de lama, efeito dos campos barrentos nos quais jogávamos, eram estendidas nos varais sem serem lavadas.
- Primeiro, estendo as roupas para que a lama seque bem. Depois, dou uns tapas em cada uma delas, e o excesso do barro cai. Fica mais fácil para lavá-las em seguida. – Dona Rosa expunha sua técnica, para surpresa de todos nós. Eu, particularmente, jamais tinha ouvido algo parecido.
A relatividade entre as ações une as engrenagens que dão força à vida. Nada é autônomo o bastante para não corresponder à coisa alguma. Complicado? Não é. Juca Silva entrou esbaforido na casa do João Folganes. Irado, bufava feito boi bravo.
- O desgraçado do Nei perdeu o meu relógio. Emprestei pra ele fazer bonito pra namorada. Queria fazer bonito, o safado. E com o meu relógio novo.
- Como você sabe que o Nei perdeu o seu relógio. Ele te disse? – o João tentava entender.
- Não. O Jóia me disse. Ele encontrou com o Nei e com a namorada dele. E o relógio não estava no pulso dele. Mas digo uma coisa, vou até a casa do Nei, agora! Ele vai ter que me dar outro igualzinho, safado! Se não, a coisa vai pegar. - disse Juca Silva, pondo-se de saída.
João agarrou-o pelo braço...
- Deixe a raiva secar, Juca Silva. Lembre-se da Dona Rosa. Depois, você dá uns tapas na raiva e vai conversar com o Nei. Vai ver que tudo se resolverá tranqüilamente. A raiva, depois de seca, cai como o barro. Fica mais fácil lavar a roupa suja. - Juca Silva pensou, amansou e ficou trocando idéias com o João. Não demorou muito e o Nei apareceu...
- Trouxe o teu relógio, Juca Silva. Eu acabei não usando. Achei perigoso andar com ele. É muito bonito. Atrai malandro facilmente...
Lembrei desse fato ao ler uma parábola que falava em secar a raiva. No mesmo princípio no qual a Dona Rosa lavava a roupa. Incrível, não?

sexta-feira, 24 de julho de 2009

AH, MARIA NÃ SEI DO QUE!...


Maria não sei do que.
Simplesmente Maria.
Morava num quarto e cozinha de um velho casarão, onde outras três famílias desfrutavam do mesmo quintal. Do mesmo tanque. Do mesmo banheiro. Da mesma pequena possibilidade para ampliar seus parcos domínios. Pessoas sem horizontes próximos, encurraladas num quintal de terra e nada mais. Eu os conheci todos, pois foi lá que nasci com direito a parteira e panos molhados em água fervente. Foi ali, sob um gigante abacateiro, que sonhei meus primeiros sonhos, que cantei meus primeiros cantos, que chorei e ri minhas primeiras emoções.
Maria não sei do que, simplesmente Maria, mulher companheira da eterna solidão, trancava-se no seu quarto e sumia do convívio amadurecido daquele quintal. Quem morava por ali, com exceção de mim, já passara dos trinta, alguns beirando os cinqüenta. Maria não sei do que aproximava-se dos sessenta. E eu, naqueles dias que acomodam esta história, mal completara os sete anos de idade.
Com a curiosidade impondo descobertas ao meu pequeno compreender, pé ante pé, encostei-me na porta do quarto da Maria. Que fazia ela naquelas tardes morenas do meu quintal campo de batalhas, do meu terreno campo de futebol, da minha área campo de idéias malucas próprias de uma infância totalmente solitária? Sentei-me à soleira. Encostei-me no batente. Adormeci no colo da inocência. Pouco depois, a porta abriu-se e eu tombei para dentro do quarto, assustado.
Ah, Maria não sei do que! Que delícia conversar com ela pela primeira vez. Rosto já marcado pelos sofrimentos, pelas angústias, pelas esperanças... Sentei-me em sua cama e ouvi, por horas, a primeira estória contada da minha vida. De reis e de princesas. De castelos e cavalos. De gigantes e duendes. De quimeras...
- Quando eu receber, vou comprar um projetor de cinema pra você. – dizia Maria não sei do que com certeza na vitória da sua esperança. Qual, Maria não sei do que!...
Apesar da minha pouca idade e do meu discernimento em formação, ela contou-me todo o drama que arrastava pelos fracassos de tantas tentativas. Lutava desesperadamente por herança que, sob seu entendimento, era-lhe de direito e justiça. Herança deixada, não em seu nome, por um irmão distante. Achava que teria um pequeno quinhão, o qual ajeitaria definitivamente a sua vida.
Maria não sei do que mantinha luta desigual na justiça. Seus sobrinhos, herdeiros, subjugavam-na através de caros advogados. Os trâmites da questão, coxos, perambulavam lentos por mesas, guichês, mãos e martelos, em propostas de esquecimento ou, quem sabe, morte da Maria não sei do que.
Durante dois anos, quase todas as tardes, eu ouvia estórias contadas por Maria não sei do que. Ela recebera de Deus o dom da criação literária, mas nunca se serviu das letras escritas para gravar seus contos maravilhosos. Talvez, foi por aí, nessa plataforma do tempo, que aprendi a contar estórias e histórias. Maria não sei do que passou-me essa energia vigorosa do relato criado ou descrito...
Tudo passa. A vida passa pelo tempo. Cresci, tornei-me adolescente, tornei-me adulto. Maria não sei do que ficara no passado, com seus sofrimentos, com suas angústias, com suas esperanças. Nunca mais a vi, até que um dia, numa tarde chuvosa, esgueirando-me junto às paredes da Rua General Câmara, quase tropecei num morador de rua. A pessoa, enrolada num roto cobertor, sujo, estava sentada, encostada na parede. Algo incontrolável fez-me ajoelhar junto àquela pessoa. Levantei a parte do cobertor que cobria seu rosto... Ah, Maria não sei do que!... Que fazia você ali, naquele túmulo de vidas desgraçadas, tomadas de sofrimentos, de angústias, sem esperanças...
- Não saia daí! – disse-lhe em carreira. Busquei meu pai. Eu sozinho não poderia salvar aquela vida que foi, um dia, meu guia de castelos, de sonhos, de esperanças... Meus Deus, como é ruim o abandono, a indiferença!
Retornamos ao local. Não havia mais ninguém. Procuramos nas ruas adjacentes. Nos hospitais. Na polícia. Em tantos lugares que me perco nas direções. E me perdi nas aflições. Desistimos.
Decorridos alguns meses, passando novamente pela General Câmara, um morador de rua ocupava o mesmo lugar de Maria não sei do que. Usava, parecia-me, o mesmo cobertor. Rápido, arranquei-lhe o pano do rosto... Mas não era ela.
- O moço procura a Maria contadora de estórias? Morreu ontem. Eu fiquei com o cobertor dela...
Ah, Maria não sei do que! Por que perdi você na minha história? Por que perdi você na minha gratidão? Por que perdi você na minha esperança? E hoje, encontro você no meu sofrimento, na minha angústia... E em todas as estórias que invento para lembrar você, como esta.
Ah, Maria não sei do que!...

sábado, 18 de julho de 2009

A ALIANÇA PERDIDA

As noites claras à beira mar são muito bonitas. Quem já teve o privilégio de vê-las, ao vivo como se diz, sabe do que estou falando. O oceano torna-se azul escuro, com reflexos de prata bem embaixo da lua. Se o mar está calmo, percebe-se estrelas boiando ao passar das ondas, como crianças brincando no balanço da maré. Coisa linda! De Poeta. Quando Deus escreve poemas nas laudas marítimas. Quando o amor deita-se na areia ao sabor salgado do mar.
Foi numa noite assim que esta história começou. Eu ajudava um grupo de pescadores de camarão. Na praia do Embaré, em Santos. Acreditem, há muitos anos, pescava-se camarão por lá. A água do mar era tão limpa que podíamos ver os nossos pés às voltas com siris. Tinha de tudo, lá. Além dos camarões e dos siris, conchas, estrelas do mar, pequenos cardumes, bagres...
A pesca era feita com arrastão de praia, aquele tipo de rede baixa e longa no comprimento. Vários homens seguravam essa rede ao longo dela e entravam no mar até onde fosse possível permanecer de pé. Com a rede já posicionada, totalmente esticada sob a água, ficávamos em silêncio, imóveis. Depois de algum tempo, começávamos a caminhar em direção da areia, arrastando a rede encostada no fundo. Os homens que a seguravam pelas pontas fechavam mais rápidos, de modo que formávamos um semicírculo. Já na areia seca, podíamos ver o que fora arrastado para fora do mar. Os peixes que não interessavam ao grupo eram jogados de volta. Restavam peixes maiores, lixo e os famosos camarões. Eu ganhava quase nada nesse trabalho, a não ser uns poucos camarões. Ajudava pelo prazer.
Numa dessas pescarias, quando estávamos posicionados para arrastar a rede, meu pé esbarrou em alguma coisa na areia embaixo d’água. Procurei identificar o objeto tocando-o com os pés, mas temia que ele desaparecesse no fundo movediço do mar. Soltei a rede e afundei para apanhar a coisa. Quando retornei à tona, na minha mão estava uma aliança. Não comentei com ninguém. Guardei-a no bolso do calção. E continuei agarrado no arrastão de praia.
No lado interno, um nome gravado. Embora soubesse o nome do dono da jóia, investiguei entre os pescadores se algum deles havia perdido uma aliança. Ninguém. Nenhum conhecido. Então, resolvi mantê-la num barbante amarrado na corrente que eu trazia no pescoço.
Dias depois, num sábado à tarde, deu-me uma vontade irresistível de passear pelos lados da "Biquinha", na cidade vizinha de São Vicente. Montei na bicicleta e rumei célere para lá. Desejava sentar-me na praça, em silêncio, e meditar um pouco. Acomodei-me num banco protegido pela sombra de uma encantadora árvore. Dezenas de pombas procuravam gulodices pelo chão. Crianças passavam saboreando doces, sorvetes... Algodão doce (que saudade!)... Casais de namorados nas muretas, nos bancos, caminhando abraçados pela praça...
- Você vai me desculpar, mas eu não aceito o que você fez. – disse-lhe ela, aparentemente nervosa. Um casal sentara ao meu lado, naquele banco da praça.
- Mas meu amor, foi num momento de raiva. Eu não tinha a intenção...
- Tudo bem. Se você não vendeu a aliança, mostre-me ela. Se você realmente não tinha a intenção de me deixar, a aliança é a prova.
A história da aliança deixou-me curioso.
- Eu a perdi no mar, acredite. Não sei o que aconteceu... – justificava ele.
- Não acredito. Pra mim, você se desfez dela. E eu sei como você é por dinheiro.
- Como é seu nome? – perguntei-lhe de súbito.
- Carlos! – respondeu-me sem me olhar.
A aliança era dele, com certeza. Muita coincidência dois Carlos jogarem a aliança no mar. Disfarçadamente, arranquei-a do barbante e, num ato rápido, coloquei-a no bolso do casaco do Carlos. Ninguém viu. Nem ele, nem ela.
- Não quero saber. Quero ver a aliança e pronto! E agora!
- Tá no bolso do seu casaco, seu m... – disse-lhe eu, ao seu ouvido, dando-lhe um tapa no ombro. E procurei afastar-me. O Carlos, embaraçado, certamente confuso, olhava para mim enquanto tirava a aliança do bolso do casaco.
Já distante, pedalando minha bicicleta, com o alívio da boa ação praticada, olhei para trás e vi o tal casal num longo beijo de amor. De reconciliação. E, com certeza, entendi, mais uma vez, que Deus manteve-se anônimo naquele acaso de coincidências.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

É SÓ UMA IDEIA


Qual seriam os níveis de miséria no mundo, de pobreza total, se todo o Conhecimento humano fosse distribuído, por equidade, em toda a humanidade?
Tinha lá meus doze, treze anos.
Cursava o ginasial.
Não era, confesso, um aluno exemplar. Mas não decepcionava.
E tal condição era o bastante para minha saudosa mãe exagerar nos elogios ao seu único filho. Tanto assim que, num belo dia, recebemos a visita de uma de suas amigas. Mulher simples, pobre, que lutava para manter seu filho em escolas públicas.
- Dona Tita, vim aqui pedir um favor à senhora. Meu filho está para fazer os exames de admissão para o “Canadá” (uma escola estadual). Ele não está bem nos estudos... Será que seu filho não dava umas aulas de reforço pra ele?
Exames de admissão...
Não me deixaram saudades.
Para ingressar no primeiro ano do curso ginasial era obrigatório o exame de admissão. Uma espécie de vestibular, nas devidas proporções, com as mesmas complexidades, com as mesmas angústias e ansiedades. Um horror!
Eu já havia superado essa fase, mas o Elias não.
O filho daquela senhora.
Então, por interferência de minha mãe, iniciei minha carreira de professor. Duas vezes por semana, o menino Elias vinha à minha casa para aprender o que eu tinha de conhecimentos para ensinar.
Um pouco de português, outro tanto de aritmética... E assim, as tardes de terças e quintas enriqueciam meu modesto currículo de vida com a missão de servir.
Contudo, sem muitas emoções. Na verdade, eu fazia tudo aquilo para atender um pedido materno.
“Meu filho é um professor!” – dizia Dona Tita, com orgulho, a todos quantos passassem por ela.
Nesse passo, dois meses se foram no consumo de terças e quintas. Mas num desses acasos que Deus assina como anônimo, por compromisso inadiável (consulta médica), eu não poderia dar aula ao Elias na quinta. Então, na quarta, fui à sua casa para avisá-lo do impedimento.
- Olá, Robertinho! Quer falar com o Elias? Pode entrar, ele está na cozinha.
Lá estava o Elias, sentado à cabeceira da mesa da cozinha, com livro e o caderno que usava em minhas aulas à sua frente.
E ao redor da mesa, mais cinco meninos, também com seus cadernos. E aí eu compreendi o verdadeiro sentido da solidariedade, da fraternidade.
O que o Elias aprendia comigo nas terças, ele ensinava aos amigos nas quartas. E repetia a ação nas sextas.
Longos cinco meses de trabalho, meu e do Elias. Mas, afinal, nossa luta recuperou esperanças, arrematou certezas, sacrificou dúvidas. E o Colégio “Canadá” matriculou o Elias na primeira série do ginásio e os cinco meninos ex-estudantes de mesa de cozinha.
Essa experiência alterou profundamente meus conceitos sobre a vida.
Percebi, tão cedo graças a Deus, a importância do servir.
A necessidade de auxiliarmos outras pessoas a serem felizes. De compreender que a nossa felicidade está intimamente ligada à felicidade das pessoas que nos cercam. Não há como crescermos sozinhos. A nossa evolução é parte da evolução infinita. Cada um de nós compõe o universo dos seres, não só humanos, que vivem em busca da harmonia, da paz, da felicidade. Somos uma sociedade etérea, comunidades heterogêneas, que, infelizmente, ainda se agridem em nome de equilíbrios sistêmicos, em nome de doutrinas tão diversas quanto a própria natureza das idéias.
Então, como buscar a harmonia que resulte na paz e, assim, produza a felicidade em cada um de nós? Evidentemente, não há fórmula mágica. Mas podemos buscar magia nas fórmulas disponíveis. Os instrumentos somos nós mesmos. E os meios estão nas experiências de vida que todos nós, sem distinções, adquirimos a cada dia. Reservar somente para si os conhecimentos que a vida oferece é egoísmo inadmissível. É deixar o túmulo digerir todo alimento acondicionado por uma existência na nossa mente, transformando-o, mais tarde, em adubo do nada, excremento da mesquinhez.
Sou e sempre serei da filosofia do ensinar a ensinar. Da troca de experiências. Da distribuição do Conhecimento, principalmente àqueles que não possuem recursos financeiros para adquiri-lo. Que Deus me dê sopas para alimentar os famintos, mas também me dê didática para supri-los do saber. Haverá o dia em que, nivelados pelo Conhecimento, as comunidades não serão tão heterogêneas, a harmonia será conseqüência da solidariedade e a tão sonhada Paz estará em nosso meio como passageira eterna no veículo-tempo que nos transporta do nascimento à morte. Todos terão as mesmas oportunidades. E a fraternidade será consagrada pelo verdadeiro amor ao semelhante.
Que tal sentarmos à cabeceira da mesa de nossa cozinha e prepararmos meninos e meninas para os ´exames de admissão´, impostos pela vida, que possibilitam a matrícula de cada um na escola da felicidade? Seríamos, então, os embriões da Grande Célula da fraternidade.
É só uma idéia...

Roberto Villani

terça-feira, 30 de junho de 2009

MEU DIA MAIS BONITO DO ANO


No domingo, dia 21, completaria setenta anos de idade. Sete décadas, contagem mágica, cabalística. Necessária alguma comemoração especial. Ter a minha volta a família, filhos, genros, netos... Até a nora que está a caminho. Entretanto, para satisfazer tal desejo, seria preciso reunirmo-nos em Santos, na casa da filha que por lá ficou quando vim para o interior. Então, convocação geral. Sairíamos na quinta à noite; combinado. Arrumamos as malas, acomodando-as nos porta-malas dos nossos carros. E dividimos as pessoas em dois veículos, quem ia neste, quem ia naquele. A ansiedade era tanta que quase esqueci de abastecer meu carro.
Fazia tempo que eu não me sentia tão feliz.
Aproveitando minha presença em Santos na sexta-feira, marquei encontros importantes para mim e para o meu trabalho. Acordei relativamente cedo. Banhei-me, tomei café e saí curtindo ruas da cidade onde nasci. Santos está muito linda. Dirigia devagar, observando jardins, edifícios, pessoas... O mar... Sensação gostosa inundava meu íntimo. Orgulho travesso revia um moleque jogando bola naquelas areias. Saudade marota arrancou lágrimas de meus olhos atentos a tudo.
Fazia tempo que eu não me sentia tão feliz.
Problemas para estacionar. Eu estava a caminho do Hospital São Lucas. Não, caro leitor, querida leitora, eu não estava com problemas de saúde. Dirigia-me àquele local para encontrar um velho amigo, funcionário de lá. O José Roberto, ou melhor, o Zé. Não nos víamos há muito tempo. Mas consegui uma vaga para deixar o meu carro. E fui obrigado a andar duas quadras. Eu sei que caminhar é preciso, que faz bem, mas...
Confesso que me emocionei ao entrar no Hospital São Lucas. Durante dez anos trabalhei ali na implantação e manutenção de sistemas de informática. Eu e o Zé Roberto. Comecei desenvolvendo programas num Applle, na linguagem chamada Turbo Basic, hoje objetos de museu. Com a compra de equipamentos mais sofisticados, criamos sistemas em Data Flex, linguagem avançada naquela época. Década de 80. Hoje, numa reverência do meu amigo Zé Roberto, sou considerado o pai da informática no Hospital São Lucas de Santos. Gostoso, não? Posso garantir que a conversa foi longe. Relembranças do passado. Das pessoas que conhecemos e que já se foram. E daquelas que, graças a Deus, ainda pertencem ao nosso presente. Deixei o São Lucas certo de ter alimentado um pouco mais a minha alegria.
Após o almoço, pus-me novamente nas ruas de Santos. Meu objetivo então era rever o meu grande amigo Carlos Pinto, Secretário da Cultura de Santos e presidente do ICACESP - . Amizade antiga, que nasceu na década de setenta, mais precisamente em 1971, quando organizei o primeiro festival de teatro infantil. O Carlos era presidente da Federação Santista de Teatro Amador e tornou-se parceiro na realização do evento, auxiliando-me naquela empreitada. O Carlos é um experto em administração pública, principalmente na área da cultura. Homem público de importância política invejável. Ser seu amigo é privilégio especial.
Nosso encontro mostrou-me uma panorâmica da cultura de um modo geral. Falei-lhe da cultura em Descalvado, das dificuldades, dos projetos, do intenso trabalho apesar das ausências... Visitei o Teatro Municipal; o Carlos está cuidando de restauros e de reformas naquele local que eu guardo com carinho no âmago das minhas saudades. Testemunha presente nas lides de meus trabalhos teatrais. Enfim, entre o primeiro e o segundo cafezinho, estreitamos acordos e eu garanti minha inscrição no ICACESP.
Deixei o gabinete do Carlos Pinto profundamente regozijado. Com a certeza de seu apoio no que me for preciso e com ingressos para assistirmos a Marisa Orth no dia seguinte, à noite, no lindíssimo Teatro Coliseu. Maravilhoso. Fomos, família de treze pessoas, e espalhamo-nos nas frisas, tribuna e camarote. E encantamo-nos. Marisa Orth, quem não a viu cantando num palco, esbanjando talento de artista completa, não imagina a beleza de sua figura e a força de sua voz. Pudesse eu trazê-la a Descalvado... Quem sabe, não é?
Como não poderia deixar de ser, o domingo nasceu belíssimo. O sol, logo pela manhã, abraçou-me por inteiro. Calor de aniversário. E acompanhou-nos pelo dia todo. Passeios pelo Gonzaga, pela Ponta da Praia... Pela Biquinha, em São Vicente... Ao entardecer, com certeza cansado pelas caminhadas ao longo do dia, o sol deixou-se levar para o oeste, abrindo espaço para a enluarada noite, repleta de estrelas, oferecer-me o beijo azul de parabéns.
Fazia tempo que eu não me sentia tão feliz.
Por fim, em cima do bolo de frutas da Viena, duas imponentes velas revelavam minha nova idade. Setenta. Agradeci a Deus e ao Mestre Jesus o privilégio de apagar aquelas velas junto com toda a minha família linda. Ao meu lado, como há quase meio século, Rosária, minha eterna companheira. Meus filhos Rosane, Rosângela e Roberto. Meus genros Luiz Borim e Luiz Calado. Meus netos Luiz Roberto, Andrey, Andressa e Allan. Minha futura nora Fernanda e a Marilia, namorada do Andrey. Comi o doce daqueles momentos, bebi o néctar da felicidade, sorvi a alegria de estar vivo diante dos meus entes queridos. E a noite passou em paz. Desfez-se no calendário o meu dia mais bonito do ano.
Fazia tempo que eu não me sentia tão feliz.
Roberto Villani
ps do editor:
Meu caro, penso eu que faltou arrumar um tempinho, para ir ate a Rio de janeiro 134, visitar o Carlos Alberto, mas.... Não se pode querer tudo, num dia só, ne?
hehehehhh

segunda-feira, 15 de junho de 2009

LER É CRESCER !

Beni esforçava-se para perder o medo de falar. E alguma mudança já ocorria no comportamento dele. Tanto assim que não foi difícil para Dida, sua fiel amiga e possibilidade de namoro, convencê-lo a assistir a uma palestra no anfiteatro do colégio. Eu fora convidado pela direção da escola para falar sobre livros e leitura. Uma iniciativa louvável para incentivar os alunos ao hábito de ler.
Beni e Dida acomodaram-se na última fileira, por escolha dele. Não queria ser muito notado entre seus colegas de escola. Como o auditório estava lotado, não lhe seria difícil passar despercebido.
- Alguém pode me responder quantos analfabetos existem no Brasil? – eu iniciava a palestra. – Como a quantidade ainda é muito grande, milhares de pessoas carecem do mínimo de Conhecimento. Por essa razão, única e indiscutível, o fracasso é o companheiro permanente na vida dessa gente. Ler é acrescentar bagagens culturais. É saber mais. Lendo, cada um de vocês aumenta o vocabulário, desenvolve a análise das argumentações, ou seja, elabora automaticamente pontos de vista e idéias.
- Ele é bom, não acha? – Dida provocava o Beni.
- Parece que é... – Beni, finalmente, emitiu um parecer, ato raro para ele, para júbilo da Dida. Eu continuava:
- Todo aquele que pretende falar bem, criar com correção seus argumentos para expô-los a outras pessoas, deve ler muito. É regra fundamental da comunicação. Quem se dedica metodicamente à leitura dificilmente escreverá ou falará de forma errada. Na leitura, assimilamos as maneiras corretas do uso das palavras, da composição das frases, enfim, de todos os quesitos necessários à boa comunicação. Mas uma coisa é importante: selecionem cuidadosamente o que vão ler. Existem muitas porcarias em forma de livros, que não acrescentarão nada ao conhecimento. Pelo contrário, poderão destruir o que vocês já tenham construído.
- Eu não gosto de ler. – sussurrou Beni a Dida. – O que posso fazer?
- Pergunte a ele. Levante a mão e pergunte. – disse-lhe ela.
Inútil proposta. Ela sabia que Beni ainda não estava preparado para expor-se em público. E resolveu substituí-lo na questão:
- Professor, eu não gosto de ler. O que posso fazer para mudar?
- Para quem não praticou a leitura desde pequeno, o desafio não é fácil. Mas também não é impossível. Você precisa adquirir o hábito. Ter vontade, entendeu? Ter consciência de que você só obterá sucesso na vida se buscar o Conhecimento através da leitura. Mas não se disponha, inicialmente, à leitura de grandes best-sellers, porque são famosos e porque todo mundo lê. Comece com livros de poesia, de crônicas, de contos... Parábolas... Muitos destes também são best-sellers, ótimos para conquistar nossas atenções iniciais, pois se constituem de estórias curtas e com muito conteúdo. Coisas assim, plenas de ensinamentos. Poesias, crônicas, contos e parábolas são ricos em exemplos verdadeiros da vida. E à medida que você desenvolve o gosto pelas letras, seu apetite literário vai exigindo leituras mais complexas. É só começar. Experimente. Tenho absoluta certeza de que você jamais se arrependerá de ter-me feito essa pergunta.
Ao finalizar, depois de uma hora de explanações, conclui:
- Lembrem-se sempre: ler é crescer!
Beni e Dida deixaram a escola felizes. Gostaram da palestra. Ouviram coisas esclarecedoras e importantes. Compreenderam que a leitura é a base de todo o Conhecimento. É a via preferencial do sucesso. E, a caminho de suas casas, passaram por uma livraria. Cada um comprou um livro. Beni escolheu Ecos da Alma, da poeta Fátima Irene Pinto. Dida optou por Levando a Vida Leve, de Laura Medioli. Carregaram-nos como algo precioso junto ao peito.
À porta da casa da Dida, entreolharam-se, sorriram e...
- Comprei este livro pra você, Beni. Com todo o meu carinho. – Dida estendeu as mãos dando o livro para o Beni.
O Beni, sem conseguir falar, deu o livro que comprara para Dida. E uma lágrima teimosa riscou de emoção seu rosto enrubescido. Dida estava feliz. O Beni dera o primeiro passo em busca da felicidade. E, quem sabe, do seu amor.
Beni foi direto ao seu quarto. Sentou-se na beirada da cama, pensativo. Desembrulhou o pacote do livro, com muito cuidado, sem pressa. Passeou pelas páginas impressas, sem ler. Buscando contato com aquele livro, senti-lo nas mãos. Algo valioso, só seu. Talvez estivesse ali, no livro, a chave das grades que prendiam seu projeto de ser feliz...
- Eu vou conseguir! – falou para si mesmo. Depois, deixou-se tombar sobre a cama. Paz sem cerimônia invadiu seu íntimo. E adormeceu tranqüilo, abraçado ao livro.

Roberto villani

segunda-feira, 20 de abril de 2009

"A CAIXA DOS PROBLEMAS"


Não há dúvidas de que o controle das emoções é algo complicado. São poucas as pessoas que, no teor da verdade, podem ser consideradas portadoras de total controle emocional. Por mais calmos, por mais equilibrados, sempre ocorrem momentos em que algum fato, bom ou ruim, desarticula nossas forças de equilíbrio. E essa fraqueza, se assim podemos chamar, é sempre desagradável, principalmente quando gera atitudes afetadas por exacerbações.
Não devemos esquecer que a motivação, uma das sustentações dos nossos avanços evolutivos, assim como a criatividade, é parceira de uma consciência emocional adequada. Então, para chegarmos a uma condição de controle emocional, que não seja perfeita, mas ideal, devemos recorrer ao autoconhecimento, à autoavaliação, principalmente no que diz respeito aos sentimentos, pois reconhecê-los enquanto acontecem é elemento decisivo da inteligência motivadora e criativa. Se avaliarmos um sentimento qualquer que nos incomode, descobrindo o âmago de sua origem, podemos, pelo menos tentar, dirigi-lo para áreas de menor importância para nós; que fiquem em segundo plano até que tudo se reorganize em nossas emoções.
Superar ansiedades e temores é a arma mais poderosa do autocontrole. O que nos gera ansiedade, deixamos para pensar amanhã. O que nos provoca medos, enfrentamos agora com a coragem e a sutileza do desprezo. O que devemos lembrar é a certeza de que a todo tempo vivemos realidades decisivas. A vida contemporânea expõe cada um de nós a desafios cruciais à nossa própria sobrevivência. Somos testados a todo instante. E isso gera sensações de instabilidade emocional, e somos levados à irritabilidade, à desconfiança, à incerteza, enfim, a toda a sorte de negativismo. E erramos conscientemente, mas amparados pelo desconhecimento de nossas próprias verdades.
Nessas fases, devemos buscar conteúdos para a vida, pelo que somos. É importantíssimo buscarmos artifícios que acomodem nossos sentimentos ruins, nas tentativas para educarmos nossa maneira de ser em razão da nossa possibilidade de ter.
Ariosto é casado. Tem dois filhos, já na fase escolar. Trabalha desde muito jovem. Acorda às cinco, banha-se, um gole de café e beijos de despedida na esposa e nos filhos, que ainda dormem. Ariosto trabalha numa indústria de rações para cães e gatos, no setor de produção. Freqüentou o ensino médio, sem conclui-lo, embora ainda tenha esperança de conquistar mais esse diploma. Sonha cursar uma faculdade. Melhorar o currículo para melhorar o salário. Melhorar o salário para melhorar as condições devida da família. Sonho de todo trabalhador.
Com sacrifício, às custas de prestações, comprou um Fusca. De cor verde limão, o que lhe causa momentos de irritação pelos deboches de seus colegas.
- Era o que eu podia comprar naquele momento... – nervoso, respondia às zombarias. E completava: - Ainda vou ter um BMW! – provocando muitas gargalhadas.
Podemos notar que Ariosto, na verdade, tem três desejos, digamos sonhos, de cunho pessoal: formar-se numa faculdade, melhorar seu salário e possuir um automóvel da marca BMW. Mas, no momento, ele tem um curso médio incompleto, um salário mais-ou-menos e um Fusca verde limão, que, por sinal, acaba de pifar. Pelo semblante do Ariosto, percebe-se que ele não está conseguindo equilibrar seu ‘astral’.
- Quer uma carona, Ariosto? – solidariedade de um colega, que lhe oferecia a garupa de sua motocicleta.
Ariosto sempre detestou andar de motocicleta. Tinha pavor. Mas não tinha outro jeito. Ficar ali não resolveria nada. Unir o útil ao agradável: no dia seguinte, pegaria carona com um mecânico. Ele, de volta ao trabalho e o mecânico, de encontro aos problemas do Fusca verde limão.
Para ele, a voltar na tal motocicleta foi horrível. O colega não era cuidadoso na direção, corria, saltava, chegou a empinar a máquina para exibir-se ao Ariosto, quase atirando-o ao solo. Imagine, o(a) amigo(a) ledor(a) o estado emocional do Ariosto naquele fim de tarde.
Meio torto, cambaleante, Ariosto deixou a moto, despediu-se do colega, agradecendo, e rumou à entrada de sua casa. No chão, perto da porta de entrada, uma caixa de metal. Ariosto abaixou-se, abriu-lhe a tampa e colocou suas mãos dentro dela por instantes. Fechou a tampa da caixa de metal, ergueu-se e, finalmente, entrou em sua casa. O colega assistiu todo o ritual do Ariosto. Passo por passo, gesto por gesto. E a curiosidade fê-lo bater palmas.
- Uma pergunta. – disse ao Ariosto assim que ele abriu a porta. E prosseguiu: - O que você fez com as mãos dentro dessa caixa?
- Deixei meus problemas, minhas ansiedades, meus medos e meus nervosismos guardados dentro dela. Essa é a minha caixa dos problemas. Não quero trazer toda essa porcaria pra dentro da minha casa. Quero paz com minha família. É uma forma que eu aprendi na Internet para controlar as minhas emoções.
- E dá certo?
- Acho que sim. Posso garantir que, assim, meus sentimentos não interferem na harmonia do meu lar. Amanhã, quando eu sair para o trabalho, ponho novamente minhas mãos na caixa e recolho aquilo que deixei agora a pouco. E garanto a você que a quantidade de porcarias será bem menor. A grande maioria morre durante a noite, talvez pela falta do oxigênio do meu cérebro. – riu, tornou a despedir-se do colega e entrou.
O segredo é condicionar os pensamentos à atitudes coerentes. Aprender a separar o que é sentimento nocivo das emoções saudáveis. Conhecer os limites que a vida impõe, bloqueando, na mente, a entrada dos desejos impossíveis, verdadeiros vilões e causadores da infelicidade. Saber adiar, para depois da própria capacitação, as investidas decisivas na conquista de escalas maiores na realização de grandes sonhos.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

UMA HISTORIA CHAMADA VIDA, PAIXÃO


Sexta-feira de uma semana santa. Feriado no país. No estado, na cidade... Na fazenda. Onde Severino trabalha no campo. Na terra, camponês. Mãos calejadas, que esfregam o sabão no rosto sulcado pelo sol de todos os dias. Severino, homem que só tem um bem. Zezinho, menino de seus sete, oito anos, que reflete o futuro que o pai não viu. Menino sem mãe. Como troca de vida no ato do parto. Severino de poucos livros, Zezinho de poucas letras. Ambos, na sua infinita inocência, apóstolos da humildade que Ele tanto pregou.
Zezinho veste-se com a única calça de brim, que ganhou de aniversário. Escolhe a camisa azul, deixando a branca na mala de lona embaixo da cama. Penteia com jeito os loiros cabelos, escova os dentes como aprendeu na escola e amarra os cordões do tênis já gasto pelas pedras dos caminhos. Andar lento, caminha até a porta de seu quarto, olha para o céu e sorri. O sol lá está, correspondendo com sorriso cheio de luz. Cumplicidade de menino e sol, desenhando cenário incomparável nas telas da existência.
Severino segura o filho pela mão. E saem, ambos, pela estrada de terra que acessa o mundo. Zezinho nunca foi à cidade. Primeira vez. Estréia de espetáculo inesquecível, que abre as cortinas dos olhos e apresenta toda a cor da vida. A longa caminhada começa a ser compensada pelo prazer de ver. Carros de todos os tamanhos, de todas as formas, de todas as posses passam lentos e velozes. Levantam poeira, às vezes terra. Levantam sonhos ocultos sob os tapetes do desconhecido até então. Pessoas atravessam praças, calçadas, bueiros, buracos... Cavalos, cachorros, carroças e promessas de muitas coisas ao passar de seus passos.
Severino pára diante de uma vitrine. Observa com olhar distante um terno vestindo um manequim. Zezinho contempla o boneco à sua frente e o compara com seu pai em pensamento. Não são parecidos, mas seu pai ficaria melhor naquela roupa. Outras vitrinas, outras visões, outros delírios mágicos na mente de um pequenino camponês.
- Pai, o que é aquilo?
- É a Paixão de Cristo. - Severino sorri. – São pessoas que gostam de contar a história de Jesus. E Jesus Cristo está logo ali, numa cruz, morrendo para nos salvar.
Mãos dadas, atravessam a multidão de espectadores. Colocam-se bem à frente do ator crucificado, empanando os olhos do pequeno Zezinho, que deixam escapar duas lágrimas tímidas. Com as suas mãos apertando as mãos do pai, Zezinho abaixa a cabeça. Não que ver mais. Para que? E força a saída de ambos daquele local dramático.
De volta, Severino entra num bar para beber algo. Zezinho fica na porta, triste. Observa tudo à sua volta. Tudo à sua volta, para o Zezinho, não tem sentido.
- Um dia Ele vai voltar... – alguém no bar assegura.
- Ele já voltou, moço. – fala o Zezinho - Eu vi Ele lá em cima, pregado na cruz. E também vi muita gente perto dEle, olhando pra Ele. Mas não vi ninguém com vontade de salvar Ele. Tirar Ele daquela cruz. Tirar aquela cruz de lá...
Severino pagou o que bebeu, pegou na mão do Zezinho e pôs-se em retirada. O passeio não foi lá essas coisas ao menino, mas ele percebeu, na sua infinita ingenuidade, que poucas pessoas estariam dispostas a arrancar definitivamente a cruz de uma história chamada Vida,Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Que o sentido verdadeiro da Páscoa seja-nos de todos os dias.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

JOÃO E MARIA


O nome dele era João Inocêncio, aposentado, casado com dona Maria. Morava numa casa muito simples, alugada, ao pé de um morro. O quintal de sua casa, lembro-me bem, era rocha pura. Não havia terra, nenhuma planta, por menor que fosse, brotava atrás de sua casa. Em compensação, à entrada de sua residência, flores abundavam aos olhos de quem lhes visitassem. Dona Maria cuidava de inúmeros vasos, organizados às margens de um corredor que ligava a porta do muro à porta da moradia.
Bons tempos aqueles! Eu tinha pouca idade e também poucas responsabilidades. Minhas atividades resumiam-se em estudar e brincar. E me punha radiante quando meus pais decidiam visitar seus amigos João e Maria. Parece coisa de estória infantil, não? João e Maria... Mas como aqueles, esses nossos João e Maria lutaram a vida inteira contra as maldades da vida. Sempre em batalhas contra as “bruxas” que se instalam no destino da gente, para experimentarem se engordamos para o “tacho” ou se emagrecemos para a liberdade.
Dona Maria formou-se no Curso Normal. Era professora primária, mas nunca exerceu a profissão. Gostava de cuidar da casa e de seus bichinhos de estimação.
- Loro quer café! – era o papagaio que se manifestava sempre que via alguém estranho pela casa. E lá ia Dona Maria servir café para as visitas e para o Loro.
Eu gostava de brincar naquelas rochas, com as crianças da vizinhança. Recrutávamos a criatividade de cada um de nós. Fazer o quê naquele solo áspero e disforme? Pega-pega, de jeito nenhum. Futebol, nem pensar. Bicicleta? Qual!... Então, escolhíamos uma parte em declive e, soltando bolas, torcíamos para acertar algum alvo colocado mais a baixo. Na verdade, imitávamos um jogo de parque de diversões.
- Crianças, almoçar! – Dona Maria, devidamente equipada com avental e lenço na cabeça, fazia questão de ver crianças ao redor da sua mesa.
- É deles o Reino de Deus. – afirmava à minha mãe, enquanto servia nossos pratos. – Eu, sempre que posso, faço um almocinho para os meus vizinhos pequenos. Adoro vê-los saboreando minha comida, nem que seja arroz e feijão com um bifinho.
- Os pais deles não se importam?
- Que nada! Até agradecem. É muito raro ver um pedaço de carne no prato deles por aqui. São muito pobres.
Após o almoço, as crianças deixaram a casa de João e Maria. Eu me deitei no sofá da sala, já um tanto sonolento. E comecei a olhar as paredes do cômodo. Retratos, muitos, emoldurados, pendurados por todos os lados. Fotografias, muitas antigas, que registravam momentos da vida de João e Maria. Eu gostava, e ainda gosto, de ver cenas do antigamente. Imagens que me dizem coisas que não sei, de pessoas que não conheci. Mas que excitam minha imaginação e me fazem lembrar que hoje somos o resultado de pessoas que foram como nós, que nos deixaram legados insubstituíveis, por mais simples que sejam, por mais insignificantes que possam parecer, componentes da trajetória histórica de cada um. Por isso gosto de ler um livro muito antigo, sabendo que outras mãos e outros olhos pousaram naquelas palavras antes de mim. Essas sensações trazem-me um gosto gostoso de saudade, de imortalidade, de eternidade. Algo que nunca passa, que nunca morre, se considerarmos nossa consciência e memória como depositários de existências que aparentemente já partiram.
Percorrendo outros espaços das paredes daquela sala, encontrei alguma coisa estranha aos meus olhos. No centro da parede frontal à porta de entrada, um pano roxo cobria algum objeto. Fixei meu olhar para aquilo, mas não consegui identificar. Então, não resisti a minha eterna curiosidade, e perguntei:
- Seu João, o que é aquilo? – apontei.
O olhar do João seguiu a direção do meu indicador...
- É o Nosso Senhor Jesus Cristo.
- Por que Ele está coberto com um pano roxo?
- Porque hoje é sexta-feira santa, filho. – meu pai antecipava a resposta do João.
João pôs-se de pé. Colocou-se diante do Cristo coberto com pano roxo. Embebido de forte emoção, comentou:
- Jesus Cristo é o nosso Senhor, o nosso Mestre. Que sofreu muito por nós. Que morreu crucificado pelos pecados que nós cometemos. Se você percorrer as paredes da minha casa, verá alguns panos roxos pendurados nas paredes. E não porque hoje é sexta-feira santa. Éu e Maria não queremos mais vê-Lo preso a uma cruz. Acho que em quase dois mil anos Ele já sofreu muito por todos nós. Está na hora de pensarmos Nele com alegria, vendo-O sempre feliz. O sorriso Dele é a Luz que todos nós precisamos, não mais as suas lágrimas. Por isso mantenho os meus crucifixos cobertos.
Na minha pouca idade, não entendi bem o que ele quis dizer. E, na verdade, nem me preocupei com tudo aquilo, muito complexo para mim. Fechei os olhos e adormeci. Já estávamos no meio da tarde e no dia seguinte, com certeza, eu sairia às ruas para malhar o Judas.

sexta-feira, 27 de março de 2009

GOOOOL!!! DE CHUTEIRA?????


Charles Miller trouxe a primeira bola de futebol para o Brasil, em 1894. Nem imaginava o que a gorduchinha, como diria Osmar Santos, promoveria entre os brasileiros. Fascínio, posso dizer. Algo indescritível, até alucinante, ora místico, ora vulgar. Deus e o diabo nas sendas dos certames. Guerra e paz. Amor e ódio. Todos os sentimentos opostos, extremos, declarados em punhos fechados esmurrando o espaço. Em bocas abertas de dor e alegria. O despertar dos magos. O elixir dos reis. Máquina de fazer milionários e miseráveis. Êxtase dos deuses míticos. Tudo e nada. Vitória e derrota. Gargalhadas e prantos intermináveis. Infarto! Futebol!
Sempre que entramos no clima de final de algum campeonato lembro de histórias interessantes. Fatos que marcaram minha vida de futebolista, nos priscos tempos da minha juventude. Eu tinha um vizinho apaixonado por futebol. Santista roxo. Conversávamos muito sobre pelejas diversas. Discutíamos muito quando o assunto girava por comparações entre o Alvinegro da Vila Belmiro e o Palmeiras. Mas estávamos sempre de acordo nas demais questões do popular esporte.
João Forganes, o meu vizinho, já tinha dois filhos. Evidente que era mais velho. Eu, adolescente, procurava extrair dele ensinamentos sobre a vida. Como um irmão mais velho. Por isso, não me incomodava quando, a cada gol do Santos, ele colocava o rádio sobre o muro divisório e aumentava exageradamente o volume. Eu sempre lhe dava o troco. Nos gols do Palmeiras, eu saltava o mesmo muro e, invadindo a varanda da sua casa, cantava em alto e bom tom o hino palmeirense. Jogo findo, reuníamos na rua, em frente às nossas casas, e ríamos muito, gostosas gargalhadas de amigos sobre todas as coisas.
- Vamos fundar um time? – perguntou-me o João, pegando-me de surpresa.
- Para quê? – pergunta idiota.
- Para que queremos fundar um time? Para jogarmos futebol, ora!
Goiás Futebol Clube, nome dado em razão dos vários jogadores residentes na Rua Goiás. Camisa verde. Calções e meias brancos. Presidente, vice, secretário, tesoureiro, conselho... Livro de atas. Coisa organizada. Treinávamos num campo da Ponta da Praia. Jogávamos, a princípio, para testar nossas equipes. Primeiro e segundo times. Amistosos sem compromissos. Assim, aos sábados ou domingos, visitávamos bairros e cidades da região, enfrentando adversários buscando os mesmos fins.
De repente, estávamos no meio de um campeonato varzeano. Times de Santos, Guarujá e São Vicente. Nossa valorosa equipe mostrava competência e avançava na tabela. Modéstia à parte, tínhamos um bom grupo. A empolgação de nossos companheiros jogadores animava nossa torcida a nos acompanhar em cada partida. Já se via nas arquibancadas camisas verdes enfocando nosso querido Goiás. Havia sempre, num canto qualquer, alguns batuqueiros fazendo barulho. Cada jogo, uma festa inesquecível.
Alcançamos, finalmente, a final. Jogaríamos no campo do adversário, o Juventus. Cidade de São Vicente. 1956, o ano. Nossa turma sabia que a disputa seria muito difícil, principalmente porque teríamos que vencer. Ao Juventus bastava o empate, pois o saldo de gols dava-lhe essa vantagem. E fomos ao campo com a certeza da vitória.
O jogo mostrava-se emocionante. Oportunidades dos dois lados. Os gols não aconteciam, mas as torcidas agitavam-se animadíssimas. Minutos finais, dois ou três. Tudo indicava que o Juventus levaria a taça. De repente, nosso lateral direito avançou pela ponta, velocidade não acompanhada pelo seu marcador. Quase na linha de fundo, cruzou em direção à pequena área. O goleiro do Juventus, na ânsia de agarrar a bola, saltou, conseguiu mal-e-mal dar um tapa na gorduchinha e trombou violentamente no meu marcador. A bola subiu e, para meu gáudio, sozinho diante do gol totalmente aberto, caia em minha direção. Bastava tocá-la, ela entraria. Uma barrigada seria o suficiente. Com o joelho... “Sopra!”, alguém na torcida gritou. Aquela seria minha grande chance de estufar a rede. A consagração. Meu Goiás seria campeão com um gol meu. E a ação concretizou-se. Da forma que ela, a bola, desceu, subiu a pino, como foguete rumo ao espaço sideral. Meu chute foi tão violento que minha chuteira escapou do meu pé e entrou na forquilha esquerda do gol adversário. “Gooool!”, gritaram todas as torcidas do mundo. E sob estrondosa gargalhada de todos que ali estavam, deixei o gramado para nunca mais esquecer o ridículo.

quinta-feira, 19 de março de 2009

LENDA DA MULHER DOS SEIOS RUBROS


Com meus treze anos, não me era difícil aventurar-me pela região onde eu morava. Tarefas diárias cumpridas, pegava minha bicicleta e, muitas vezes, sem rumo, viajava pelos segredos da juventude, buscando liberdade. Visitava ruas e ruelas. Conhecia o desconhecido. Desvendava mistérios. Coisas de menino curioso, desbravador de sonhos. O vento acariciava meu rosto enquanto eu pedalava tentando encontrar o horizonte. Quem sabe alcançar o outro lado do arco-íris e achar o tal tesouro dos contos de fada. Olhares panorâmicos me forneciam detalhes de janelas e sacadas, de flores e pássaros, de pessoas das mais diferentes aparências... Um cão acolá urinava na sacola da senhora distraída. Meninos, como eu, encenavam um jogo de futebol. Meninas, acomodadas na calçada, amamentavam bonecas com mamadeiras improvisadas. Minhas sensações davam-me a entender que eu descobria o mundo no pequeno espaço coberto pelas rodas da minha bicicleta.
Numa noite, reunido aos colegas de rua na calçada da Mercearia Brazão, falávamos de assuntos próprios das nossas idades. Tirávamos dúvidas, revelávamos conhecimentos, discutíamos com tal empenho que parecíamos membros de organização governamental. Fazíamos nossas leis como legisladores de nossas relações. Isto pode, aquilo não! A proposta constituía-se em proteção, nossa proteção, em razão de perigos irrelevantes, mas que, naquele pedaço de vida de cada um, tomavam proporções alarmantes.
- Nenhum de nós deve provocar o Tico Doido. Ele não é bom da cabeça e pode agredir qualquer um de nós sem mais nem menos. – disse o Godofredo.
- Nem passarmos pela Ilha Maldita no dia 30 de agosto, à meia-noite. A mulher dos seios rubros aparece e pode jogar maldição na gente. Foi minha mãe quem falou. – avisou o Júnior Italiano.
Coisas do encanto. Lendas que envolvem nossa existência como fatos mágicos que, de certa forma, enriquecem nossos arquivos fantásticos. Próximo de nossas casas havia um lugar chamado Ilha Maldita. Uma rua sem saída, um beco estranho, envolvido em mistérios. Alguns barracos espetados em chão de terra batida abrigavam famílias bem pobres. Por ali, não passavam carros, nem carroças, nem pessoas, a não ser residentes. Muitas estórias pululavam pelo cenário daquele lugar. Coisas de mistérios, de segredos, incompreensíveis, quiçá inacreditáveis... No fundo do beco, exatamente onde era interrompida o que seria a continuação da rua, intransponível bambuzal. Contava-se que ali, atrás de tantos bambus, uma casa de madeira, abandonada, guardava estória dramática. Lá viveu um casal. Ele, Jorge, bem mais velho que ela, a Miriam. Jovem, corpo bem definido, ela acabou por seduzir um rapaz das redondezas. Encontravam-se na casa dela, sempre que o marido, viajante, deixava a cidade. Certa noite, 30 de agosto, Jorge, por motivos desconhecidos, voltou antes do esperado. E no instante que se aproximava de sua casa, pode ver Miriam abrir a janela do seu quarto. Estava nua e mostrava os fartos seios à luz do luar. Atrás de Miriam estava o amante. Jorge, sem perda de tempo, sacou do revolver e atirou. Uma só bala atravessou o peito de Miriam e alojou-se no coração do amante. Os fartos seios de Miriam cobriram-se de sangue. E a tragédia perpetuou-se como lenda. Todo dia 30 de agosto Miriam aparecia na janela da casa abandonada.
No dia fatídico de aniversário da tragédia, não perdi tempo. Não temi a falada maldição. Inventei alguma coisa aos meus pais para justificar o tardar no retorno para casa e rumei para a Ilha Maldita. Queria ver de perto o que o povo descrevia. No local, afastei alguns bambus e, com dificuldade, pude ver a tal janela. Lá pelas tantas, uma formosa jovem apareceu. Tinha os lindos seios à mostra e um vulto de homem atrás do seu corpo nu. Eu estava extasiado com o que via. De repente, um estampido. Os seios de Miriam tornaram-se vermelhos, cor de sangue. Aos poucos, a imagem naquela janela desvaneceu-se, sumiu. Arrepiado, fugi daquele lugar. O horror tomara conta de meu ser. Conferi a veracidade da lenda? Ou não? Se foi coisa da minha imaginação, não sei. Prevenido, nunca mais me aproximei do sinistro bambuzal.
Roberto Villani

sexta-feira, 13 de março de 2009

BOI DE BOCA LARGA


Rômulo nasceu pobre. Mas aos 14, 15 anos, Rômulo viu seu pai entrar no comércio dos touros, bois e vacas. Criador, digamos assim. Comprava, procriava e vendia. Entre um negócio e outro, o pai do Rômulo conseguia juntar alguns trocados para o futuro. Coisa pouca, mas alguma coisa. Assim, aos poucos, entre um bezerro e outro, o pai do Rômulo, de alguns bois fez boiada. Não numerosas rezes, mas já não decepcionava.
Lá pelas tantas, já no verdor de seus 30 anos, Rômulo viu seu pai partir para outros prados, talvez mais azuis do que verdes. Sobrou para Rômulo um pedaço de terra e um punhado de touros, de bois e de vacas. Coisa pouca, mas alguma coisa. Mais ou menos animado, Rômulo encaminhou sua vida ao comércio dos touros, bois e vacas. E já demonstrava orgulho de seu trabalho, admirando cada bezerro que nascia em sua terra, quando algo inusitado o decepcionou.
- De boca larga? – perguntavam espantados alguns.
- Sim, um bezerro de boca larga. – respondia, choroso, o pobre Rômulo. – E meu pai foi o culpado, pois me deixou machos de má qualidade.
Rômulo, depois de algum tempo, resolveu entrar no comércio de boi de corte. Queria diversificar. Comprar, procriar e vender já não era tão atrativo financeiramente. No comércio de boi de corte, poderia até exportar. Receber em dólar. Já imaginaram Rômulo contanto dólares? Valia a pena. E tentou daqui, tentou dali...
- De boca larga? – outros espantados perguntavam.
- Sim, um touro de boca larga. – respondia, choroso, o pobre Rômulo. – O sócio do meu pai foi o culpado, pois só trazia machos de má qualidade para nossa terra e meu pai os aceitava.
Mas o negócio de boi de corte não deu certo. Faltava-lhe volume de carnes para negociar bem. Os pedidos suplantavam o estoque. E Rômulo perdia contratos, perdia dinheiro. Com a oferta menor, as propostas diminuíam, a concorrência vencia, o Rômulo perdia.
- De boca larga? – perguntavam espantados tantos outros.
- Sim, um boi de boca larga. – respondia, choroso, o pobre Rômulo. – A vaca que o pariu foi a culpada, trazida pelo sócio do meu pai e meu pai a aceitou.
Sem pensar muito, virou seu comércio para a produção de leite. Separou as vacas mais tetudas, pois achava que pelo tamanho dos peitos a quantidade diária de leite seria maior. Juntou banquinho, balde, luvas... Rômulo especializou-se em ordenhar vacas, as poucas vacas para pouco leite. Coisa pouca, mas alguma coisa.
Rômulo não viu o bezerro de boca larga crescer alimentado pelo leite da vaca que o gerou. Rômulo não viu o touro de boca larga ser castrado não sei por quê. Rômulo não viu o boi de boca larga ser abandonado no pasto como algo sem serventia, inútil. Para que serve um boi de boca larga? Como reprodutor, uma blasfêmia contra a Natureza. Para corte, uma temeridade para a saúde pública. Para produzir leite... Já não era macho, mas também não era fêmea. Aquele bicho de boca larga não servia mesmo pra nada. Não era nada! Rômulo pensava assim e por isso não o via.
Um dia, não muito aquém do começo de tudo, Rômulo viu o seu comércio falir. O seu mundo ruir. E sua vida ir parar no meio do pasto. Ao lado de um boi de boca larga.
- Você precisa reconhecer as leis que estão regendo a sua vida e ter coragem para mudá-las. - disse-lhe o boi de boca larga.
- Você fala? – perguntou Rômulo, completamente confuso e amedrontado.
- Para isso tenho a boca larga. O que para você é um terrível defeito, para mim é benção divina.
- Mas por que não descobri isso antes, meu Deus?
- Porque você sempre fez as mesmas coisas. Sempre viu as mesmas coisas. Em conseqüência, sempre recebeu as mesmas coisas. Além disso, sempre colocou sobre os outros a culpa de seus inúmeros erros. Eu fui uma idéia nova. Fui uma esperança. Fui a possibilidade de mudar o seu caminho antes da sua derrocada. Mas você não me viu. Não me entendeu.
- Foi o destino, boi da boca larga.
- O destino destina e nós fazemos o resto. Não há caminhos feitos. Nós os fazemos à medida que caminhamos. Por falar nisso, vem comigo?
- Para onde você vai?
- Para algum lugar que me dê satisfação. Se você agora me vê como uma boa idéia, siga-me. Lembre-se de que somente um boi de boca larga restou para você.
Há quem diga que um homem muito velho e um boi de boca larga atravessam caminhos pelo mundo todo. O boi fala e o homem escuta. E aqueles que entenderem a fala do boi e o silêncio do homem serão os senhores absolutos de seus próprios caminhos. Pode até ser coisa pouca, mas alguma coisa, com certeza.