GESTOS PERIGOSOS

sexta-feira, 31 de julho de 2009

DEIXE SECAR A RAIVA


Tinha lá meus quinze anos. Adorava jogar futebol. Passava tardes inteiras batendo bola nas areias das praias de Santos. Aos sábados, quando compromissos com os estudos davam chances ao entretenimento. Desculpem, mas gosto de relembrar esse tempo de ser feliz sem responsabilidades maiores. Uma bola, um grupo de jovens dispostos e uma, duas, três partidas ao longo das horas.
- Mais uma? A melhor de três. Quem ganhar é o campeão deste sábado...
Até o João Folganes participava dessas chamadas peladas. Era o mais velho de todos. Tinha idade para ser pai de alguns de nós. Mas tinha a voluntariedade de um jovem irmão. Meu vizinho. Meu amigo. Meu conselheiro. As dúvidas que a vergonha impedia-me de recorrer ao meu pai, o João me explicava. Interessante, não tinha filhos. Talvez por isso, era tão ligado ao nosso grupo de jovens.
- Estou com idéia de fundar um time de futebol. O que você acha? – disse-me um dia. Sua idéia firmava-se no aproveitamento daqueles que, aos sábados, riscavam nas areias das praias do litoral os dribles, os tombos, os cruzamentos... Os saltos dos goleiros... Marcas da alegria que a bola trouxe aos povos de várias partes do mundo. Formas de amor coletivo, explícitas nas arquibancadas dos estádios que se construíram como Coliseus para vinte e dois gladiadores da era moderna.
Goiás Futebol Clube. Em razão do nome da rua na qual a maioria morava. Camisas verdes e calções brancos. Lembro-me de alguns: Juca Silva, Peixinho, Carlos Preto... Ah, Dona Rosa, que saudades! Negra que esbanjava simpatia. Mãe do Carlos Preto. Morava numa casa de madeira, quase um barraco. Na chamada Ilha Maldita, um reduto afavelado que interrompia a rua Vahia de Abreu, em pleno Gonzaga de Santos. Lavava roupa pra sobreviver. Com sorriso pleno, incumbiu-se de lavar semanalmente o uniforme do Goiás Futebol Clube.
A maneira de lavar roupas de Dona Rosa chamava a atenção daqueles que a conheciam. As peças encharcadas de lama, efeito dos campos barrentos nos quais jogávamos, eram estendidas nos varais sem serem lavadas.
- Primeiro, estendo as roupas para que a lama seque bem. Depois, dou uns tapas em cada uma delas, e o excesso do barro cai. Fica mais fácil para lavá-las em seguida. – Dona Rosa expunha sua técnica, para surpresa de todos nós. Eu, particularmente, jamais tinha ouvido algo parecido.
A relatividade entre as ações une as engrenagens que dão força à vida. Nada é autônomo o bastante para não corresponder à coisa alguma. Complicado? Não é. Juca Silva entrou esbaforido na casa do João Folganes. Irado, bufava feito boi bravo.
- O desgraçado do Nei perdeu o meu relógio. Emprestei pra ele fazer bonito pra namorada. Queria fazer bonito, o safado. E com o meu relógio novo.
- Como você sabe que o Nei perdeu o seu relógio. Ele te disse? – o João tentava entender.
- Não. O Jóia me disse. Ele encontrou com o Nei e com a namorada dele. E o relógio não estava no pulso dele. Mas digo uma coisa, vou até a casa do Nei, agora! Ele vai ter que me dar outro igualzinho, safado! Se não, a coisa vai pegar. - disse Juca Silva, pondo-se de saída.
João agarrou-o pelo braço...
- Deixe a raiva secar, Juca Silva. Lembre-se da Dona Rosa. Depois, você dá uns tapas na raiva e vai conversar com o Nei. Vai ver que tudo se resolverá tranqüilamente. A raiva, depois de seca, cai como o barro. Fica mais fácil lavar a roupa suja. - Juca Silva pensou, amansou e ficou trocando idéias com o João. Não demorou muito e o Nei apareceu...
- Trouxe o teu relógio, Juca Silva. Eu acabei não usando. Achei perigoso andar com ele. É muito bonito. Atrai malandro facilmente...
Lembrei desse fato ao ler uma parábola que falava em secar a raiva. No mesmo princípio no qual a Dona Rosa lavava a roupa. Incrível, não?

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