GESTOS PERIGOSOS

sexta-feira, 24 de julho de 2009

AH, MARIA NÃ SEI DO QUE!...


Maria não sei do que.
Simplesmente Maria.
Morava num quarto e cozinha de um velho casarão, onde outras três famílias desfrutavam do mesmo quintal. Do mesmo tanque. Do mesmo banheiro. Da mesma pequena possibilidade para ampliar seus parcos domínios. Pessoas sem horizontes próximos, encurraladas num quintal de terra e nada mais. Eu os conheci todos, pois foi lá que nasci com direito a parteira e panos molhados em água fervente. Foi ali, sob um gigante abacateiro, que sonhei meus primeiros sonhos, que cantei meus primeiros cantos, que chorei e ri minhas primeiras emoções.
Maria não sei do que, simplesmente Maria, mulher companheira da eterna solidão, trancava-se no seu quarto e sumia do convívio amadurecido daquele quintal. Quem morava por ali, com exceção de mim, já passara dos trinta, alguns beirando os cinqüenta. Maria não sei do que aproximava-se dos sessenta. E eu, naqueles dias que acomodam esta história, mal completara os sete anos de idade.
Com a curiosidade impondo descobertas ao meu pequeno compreender, pé ante pé, encostei-me na porta do quarto da Maria. Que fazia ela naquelas tardes morenas do meu quintal campo de batalhas, do meu terreno campo de futebol, da minha área campo de idéias malucas próprias de uma infância totalmente solitária? Sentei-me à soleira. Encostei-me no batente. Adormeci no colo da inocência. Pouco depois, a porta abriu-se e eu tombei para dentro do quarto, assustado.
Ah, Maria não sei do que! Que delícia conversar com ela pela primeira vez. Rosto já marcado pelos sofrimentos, pelas angústias, pelas esperanças... Sentei-me em sua cama e ouvi, por horas, a primeira estória contada da minha vida. De reis e de princesas. De castelos e cavalos. De gigantes e duendes. De quimeras...
- Quando eu receber, vou comprar um projetor de cinema pra você. – dizia Maria não sei do que com certeza na vitória da sua esperança. Qual, Maria não sei do que!...
Apesar da minha pouca idade e do meu discernimento em formação, ela contou-me todo o drama que arrastava pelos fracassos de tantas tentativas. Lutava desesperadamente por herança que, sob seu entendimento, era-lhe de direito e justiça. Herança deixada, não em seu nome, por um irmão distante. Achava que teria um pequeno quinhão, o qual ajeitaria definitivamente a sua vida.
Maria não sei do que mantinha luta desigual na justiça. Seus sobrinhos, herdeiros, subjugavam-na através de caros advogados. Os trâmites da questão, coxos, perambulavam lentos por mesas, guichês, mãos e martelos, em propostas de esquecimento ou, quem sabe, morte da Maria não sei do que.
Durante dois anos, quase todas as tardes, eu ouvia estórias contadas por Maria não sei do que. Ela recebera de Deus o dom da criação literária, mas nunca se serviu das letras escritas para gravar seus contos maravilhosos. Talvez, foi por aí, nessa plataforma do tempo, que aprendi a contar estórias e histórias. Maria não sei do que passou-me essa energia vigorosa do relato criado ou descrito...
Tudo passa. A vida passa pelo tempo. Cresci, tornei-me adolescente, tornei-me adulto. Maria não sei do que ficara no passado, com seus sofrimentos, com suas angústias, com suas esperanças. Nunca mais a vi, até que um dia, numa tarde chuvosa, esgueirando-me junto às paredes da Rua General Câmara, quase tropecei num morador de rua. A pessoa, enrolada num roto cobertor, sujo, estava sentada, encostada na parede. Algo incontrolável fez-me ajoelhar junto àquela pessoa. Levantei a parte do cobertor que cobria seu rosto... Ah, Maria não sei do que!... Que fazia você ali, naquele túmulo de vidas desgraçadas, tomadas de sofrimentos, de angústias, sem esperanças...
- Não saia daí! – disse-lhe em carreira. Busquei meu pai. Eu sozinho não poderia salvar aquela vida que foi, um dia, meu guia de castelos, de sonhos, de esperanças... Meus Deus, como é ruim o abandono, a indiferença!
Retornamos ao local. Não havia mais ninguém. Procuramos nas ruas adjacentes. Nos hospitais. Na polícia. Em tantos lugares que me perco nas direções. E me perdi nas aflições. Desistimos.
Decorridos alguns meses, passando novamente pela General Câmara, um morador de rua ocupava o mesmo lugar de Maria não sei do que. Usava, parecia-me, o mesmo cobertor. Rápido, arranquei-lhe o pano do rosto... Mas não era ela.
- O moço procura a Maria contadora de estórias? Morreu ontem. Eu fiquei com o cobertor dela...
Ah, Maria não sei do que! Por que perdi você na minha história? Por que perdi você na minha gratidão? Por que perdi você na minha esperança? E hoje, encontro você no meu sofrimento, na minha angústia... E em todas as estórias que invento para lembrar você, como esta.
Ah, Maria não sei do que!...

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