GESTOS PERIGOSOS

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

A MORTE DA ARANHA


Manhã descolorida, diria cinzenta. Nem os pardais, que todos os dias promovem algazarra no pé de acerola encostado na janela do meu quarto, apareceram parceiros do meu despertar. Coisa choça, sem graça. Gosto acre, sabor de nada. Quando acordamos de sono profundo e perguntamos a nós mesmos: que foi feito da noite? Profecia indesejada de algo ruim. Acordar proibido. Sem sentido, sem motivo, sem ´mea culpa´.
Movimentava-me lento, preguiçoso, tonto, arrastando o chinelo até o banheiro. Nostalgia inoportuna agarrava-me o peito. Saudade maluca, inexplicável, invadia os meus pensamentos. Não me sentia bem. Larguei-me sob o chuveiro e tentei fazer da água morna uma forma de relaxamento. Os minutos passavam e eu reclamava dos ponteiros, dos dígitos... Achei que o digital andava mais rápido que o análogo. Bobagem minha. Na verdade, tudo andava mais rápido que eu.
- O café está na mesa. Vai demorar? – anunciou Rosária.
Glicemia a 182. Pressão arterial a 16 por 12. Com certeza, bateria baixa. Carência de energia. Falta de combustível. Conquistava, então, uma certeza: eu precisava comer! Fazer exatamente o que a proprietária da teia (que a faxineira não viu) fazia no canto da parede. A pequenina aranha demonstrava apetite, coisa que não ocorria comigo. Eu parecia preso numa gigantesca teia. Dificuldade para me locomover... E comecei a pensar nelas, nas aranhas. Veja, o corpo das aranhas é formado por dois segmentos, diferente dos insetos que possuem três. Tem uma estrutura rígida, revestida por um exoesqueleto. Elas têm oito pernas. Aí, perguntei-me: pra que tantas, não é? E nova pergunta me fiz: que coisa besta é essa de ficar pensando em aranhas? Meu tempo estava passando por mim sem que eu o acompanhasse?
Enfim, deglutir era necessário... E rápido, porque o tempo, como já afirmei, passava sem dó da minha indolência. Engoli o básico. Tomei os remédios de todo o dia, beijei a Rosária e pus-me porta à fora. Cheguei no trabalho no horário. Minha sala já estava aberta. O café na garrafa térmica a postos no seu local de costume. Encostei meu laptop na parede, acomodado no chão. E sentei-me ainda bastante sonolento.
- Seu Roberto, venha ver uma coisa. – o Gaspar, meu companheiro de trabalho, pedia a minha presença. Ele estava parado, no meio do salão de eventos. Apontava-me a parede à nossa frente. E lá estava a razão do seu chamado. Uma enorme aranha preta, bem no meio da parede. Aproximadamente dez centímetros de diâmetro, a partir da extremidade de suas pernas. Imagem assustadora e, ao mesmo tempo, obra de arte da Natureza. Estava estática, talvez temendo por nossa presença. Quem sabe, pronta para atacar. Não sei se era o caso daquela, mas há algumas que saltam em cima da gente. E eu temia um contra-atraque inesperado. Quem sabe, era exatamente a teia daquela ali que me segurava desde que despertei naquela manhã cinzenta.
O Gaspar sumiu de repente e de repente voltou. Trazia um inseticida spray decidido a enfrentar o bicho.
- Gaspar, aranha não é inseto. Aranha pertence à família dos Arachnida. É parente dos escorpiões, dos carrapatos e dos ácaros... – o Gaspar não deu importância ao que eu lhe dizia e lançou a primeira lufada venenosa sobre a inimiga.
- Gaspar, isso não vai adiantar. É capaz de irritar a bichinha e ela nos atacar...
A ação do Gaspar foi devastadora. A aranha tentou movimentar-se pela parede, mas não conseguiu; despencou. Gaspar descarregou a vaporosa munição sobre a vítima do nosso pavor. No chão, ela deu várias cambalhotas e procurou andar. Com dificuldade, arrastou-se em minha direção. Fiquei inerte. Não saí do lugar. Viria pedir-me socorro? Mas no meio do caminho ela parou. Contorceu-se, mais uma ou duas cambalhotas e esticou para cima as oito pernas, visão que me perturbou. A morte é patética. Não é um espetáculo para se ver, como fazíamos eu e o Gaspar naquele momento. Ali parados, sinistros, silentes. Depois de instantes, ela se encolheu toda, juntando todas as pernas ao seu corpo. E morreu.
Enquanto o Gaspar, com uma vassoura, levava a aranha morta para fora do salão, eu retornei à minha sala. Sentimento mórbido atacou-me como veneno aos meus pensamentos. Sem sentido, sem motivo, com ´mea culpa´. Uma vida fora roubada à Natureza sem que eu fizesse algo para impedir... A morte daquela aranha mostrou-me a fragilidade da vida. E o que é indiferença. Somos muito pequenos diante do poder que temos, mas não dominamos. Com sprays que lançam vapores, balas, lâminas afiadas, bombas etc, destruímos o que construímos. É a lei do ser mais inteligente do planeta, o que fazer?
O telefone tocou.
- Meu bem, você nem imagina! A orquídea branca está cheinha de botões... – a Rosária colocava um raio de luz no sol do meu céu, agora nem tanto cinzento.

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