GESTOS PERIGOSOS

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

SE ELE VOLTAR


- ¿Usted puede ayudarme?
Eu estava sentado sobre uma pedra à beira do rio sem nome. Eu o chamava assim, sem nome, pois nunca tive interesse em saber como se denominava. Na verdade, isso não me seria importante, uma vez que a beleza bucólica do lugar me satisfazia. Hora do almoço. Tornara-se hábito sentar-me ali, olhando as águas deslizarem rumo ao destino que Deus lhes deu. Empurrando folhas e detritos comuns aos rios sem nome. O calor era intenso e eu não tinha a menor vontade de comer. Ao meu redor, mato baixo, relva. Mais à minha frente, a refinaria de petróleo de Cubatão. Atrás, a escola onde eu trabalhava.
- Por favor, ¿me puede decir cómo se va hasta el centro de la ciudad?
Eu ficava muito tempo por ali. Olhar aquele rio, as pedras, o mato, o morro mais adiante e a Serra do Mar bem ao fundo era reconfortante. Ali eu expulsava minhas irritações. Alimentava meus sonhos. Tentava falar com Deus durante minhas confissões ao sol, junto aos pássaros. Se Ele pudesse me ouvir, com certeza entenderia minhas tantas dúvidas e esperanças. Saberia o porquê das minhas aflições. Mas acho que Deus não perderia tempo com minhas fraquezas.
- ¿Cómo yo podría ir al centro?
- Como? Não estou entendendo... – eu estava confuso e, confesso, assustado.
Quem era aquele homem magro, com cabelos crespos e negros semicobertos por chapéu de abas largas e com barbas quase brancas, em pé, bem atrás de mim? E como ele chegou ali? Pelo meio do mato? Teria que passar pelo morro. Pela refinaria não seria possível; ninguém tinha permissão para atravessar a ponte sobre o rio. A não ser que estivesse a trabalho. E ele, com certeza, não era empregado daquela empresa. Pela escola, sem dúvidas, o vigilante não o deixaria passar.
“No habla español...” – murmurou o homem. E falou-me:
– Desculpe, mas já notei que você não compreende a língua espanhola. – disse, acomodando no chão a pesada mochila que carregava nas costas.
- É verdade, não falo espanhol, infelizmente.
- Não é difícil entendê-la. É muito parecida com o seu idioma. Basta prestar bastante atenção em cada palavra.
Levantei-me com um sorriso forçado. A surpresa e o susto ainda perturbavam minha mente, apesar da curiosidade
- Mas, então, o que o senhor me falava? Em espanhol. – tentei mostrar-me interessado.
- Preciso ir ao centro da cidade. Comer alguma coisa. Faz horas que caminho sem colocar nada na boca. Quero saber como posso chegar lá.
Olhei para todos os lados. Eu só poderia passar por dentro da escola, único caminho viável para mim.
- Eu não sei... – falei quase murmurando, procurando alguma saída.
- Por causa do vigilante? – perguntou-me.
- Sim... O único meio de passarmos para a pista é pela escola... Mas como sabe do vigilante? – eu continuava por demais confuso.
- Daqui dá pra vê-lo. Olhe! – apontou o dedo indicador para a porta de vidro nos fundos da escola. – Não é um deles?
Olhei através da porta.
- Sim. É um deles...
- Estou trazendo problemas a você?
- Claro que não.
O vigilante que estava na portaria felizmente não criou problemas. Acredito que, como eu, não estava entendendo nada. Mas, não foi difícil passar o homem pela porta principal, mesmo porque me responsabilizei pela situação. E naquele horário não havia mais ninguém na escola; estavam todos almoçando.
- Estou na minha hora de almoço. Posso levá-lo até um restaurante simples, mas que tem uma comida muito boa.
- Oh, não se preocupe. Basta dizer-me como chegar ao centro. Vou caminhando. Andar faz bem à saúde! – e sorriu.
Havia algo de especial naquele rosto. Era-me totalmente estranho mas, ao mesmo tempo, parecia-me conhecê-lo há muito tempo. Carismático? Ou a química da empatia começava a mostrar seus efeitos? Eu o acabara de conhecer e já algumas dúvidas incomodavam meus pensamentos. Mas não era o momento para perguntas.
- Permita-me levá-lo. Será um prazer, creia. – insisti.
Olhou-me com firmeza, por alguns segundos em silêncio.
- Você gosta de servir, estou certo?
- Sempre que puder. Gosto de ver as pessoas felizes. – respondi, sem esconder uma certa doze de emoção.
- Por isso seu nome combina tanto com você. É de origem anglo-saxônica. Significa “brilhante na glória”.
Minha cabeça virou.
- Como sabe o meu nome?
- Está escrito aí no seu crachá. – apontou para o meu peito, com leve sorriso.
Aliviado, simplesmente sorri, um tanto desconcertado. Entramos no meu carro. Ele acomodou a mochila no banco de trás. E sentou-se ao meu lado, com um sorriso.
- Pode me dizer o seu nome? – perguntei-lhe, dando partida no carro.
- Abdon.
- Abdon... – confirmei.
- Abdon, para servi-lo.
Seguimos em silêncio. Eu dirigia rumo ao restaurante e ele, debruçado na janela da porta do carro, olhava tudo que podia. Não estava bem vestido, com calças comuns e uma camisa modelo antigo. Nos pés, sandálias de couro. Já bem surradas talvez por tantos quilômetros de caminhadas. Mas aparentava uma elegância mágica, diria misteriosa. Parecia sempre calmo, embora estivesse com ele há tão pouco tempo. E notei que sempre tinha um leve sorriso no rosto. Um homem feliz?
Cada um pagou o seu almoço. Ele não aceitou minha proposta de pagar as despesas.
- Amigos, amigos, almoços à parte. – disse, já na porta do restaurante. E sorriu mais uma vez.
- Precisa de outra carona? Para algum lugar? – perguntei, curioso pelo destino dele a partir daquele instante.
- Não, obrigado. Daqui eu me arranjo. Vou procurar um hotel e descansar um pouco. Hoje à noite, terei trabalho a fazer.
- Trabalho?
- Sim. Proferir uma palestra. É pra isso que eu vivo. Viajo pelo mundo inteiro levando a palavra para todos os povos, em todos os idiomas. Qualquer dia retorno e conto a história para você. Até breve! E obrigado pela companhia. Foi muito bom revê-lo.
Virou-se e começou a afastar-se, com a pesada mochila às costas. Entrei no carro. Dei partida e, acelerando o motor, lembrei-me de perguntar-lhe:
- Ei, Abdon! Aonde vai ser a sua palestra? – espichei-me pela janela do carro. Não obtive resposta. Abdon já tinha sumido na dobra da esquina. Mas uma dúvida ficou gravada na minha mente: por que ele me disse “foi muito bom revê-lo”? Esse encontro já tem mais de trinta anos.
E eu ainda não decifrei o mistério.
Quem sabe, se um dia ele voltar...

Roberto Villani

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