GESTOS PERIGOSOS

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

A LAMENTOSA DONA MARINA


Morávamos numa rua muito pequena. Rua Particular João Rocha. No começo, não tinha calçamento. Nem esgoto. As casas tinham fossa. Os demais detritos corriam a céu aberto, numa vala que separava a rua de terra das casas de madeira. Uma ponte em cada entrada dava acesso às moradias. Ambiente simples, mas muito gostoso. Com horta de japonês em frente, um pouco à direita. Com direito a campinho de futebol mais à esquerda.
Lembro-me que em cada casa havia um pomar, ou quase um pomar. Manga, banana, abricó, caqui... Caqui chocolate, a gente comia ainda verde; não “pegava” na boca como os outros. Abiu, já ouviu falar? Carambola! Meu Deus, hoje me arrepio ao constatar o preço dessa fruta nos mercados. Carambola havia por toda a parte, com fartura, pra quem quisesse. Minha caramboleira, única sobrevivente no avanço do concreto no quintal da casa de meus pais. Abacateiros...
- Não posso comer abacate. É muito gordurosa essa fruta. Ataca meu fígado. Deixa meus intestinos com problemas... Um inferno! – lamentava Dona Marina, debruçada no portão de madeira.
Dona Marina era uma vizinha, duas casas à direita da minha. Invariavelmente, todos os dias, punha-se logo cedo no portão de sua casa a espera que alguém passasse. Não dizia “bom dia!”, “boa tarde!” ou “boa noite!”. Não falava o português de todos nós. Servia-se de dialeto, linguagem dos “ais”, dos “uis”. Na verdade, nós compreendíamos, mas não entendíamos.
- Ai, querida! Você não imagina a noite horrível que enfrentei. Além da enxaqueca, ui!, que dor de dente e ai!, uma coceira terrível na sola do pé direito. Ui, que sofrimento!
Não tinha jeito. Dona Marina subsistia através dos lamentos. E não cuidava só de queixar-se do corpo, mas de tudo que a rodeasse. Ai, lamentava-se do fogão... O marido, seu Maurício, passou a comprar comida pronta. Ui, lamentava-se de colchão pequeno. Seu Maurício passou a dormir no chão. Ai, ui, lamentava-se da rua, do tempo, do rádio, da televisão. Lamentou tanto do Corinthians que “seu” Maurício passou a torcer pelo Jabaquara Futebol Clube.
Enquanto isso, o progresso visitava aquela pequena rua. Chegou o esgoto, o asfalto, melhor iluminação... As casas, aos poucos, trocavam a madeira pela alvenaria. Meu pai fez do modesto chalé um belo sobrado. A horta e o campinho deram lugar a loteamento, com sobradinhos na planta. As construções, aos poucos, mudaram completamente a imagem da pequena Rua Particular João Rocha. Para cada lado que a gente olhava, encontrava uma cor do novo. Menos para uma direção, que conservava a mesma visão do antigo, do início. A da casa da Dona Marina, ainda chalé de madeira, ainda fossa. Sorte do “seu” Maurício que o calçamento roubou-lhe a ponte. Só os gastos com remédios, consultas e outras despesas supérfluas consumiam grande parte do salário do “seu” Maurício. Tudo caminhava para frente. Menos “seu” Maurício, prisioneiro dos lamentos de Dona Marina.
- Ai, eu não agüento mais o cheiro da fumaça de tanto carro. Ui, meus pulmões estão cheios de gás carbônico e enfisema. – dona Marina lamentava o trânsito trazido pelo asfalto. Lamentava o barulho dos motores, das buzinas, da luz dos faróis...
De tanto se lamentar das noites escuras, “seu” Maurício dormia com as luzes acesas. Pelos lamentos sobre os programas de televisão, “seu” Maurício só ouvia o rádio. Com certeza, dona Marina era de se lamentar. Provocava no marido reviravoltas nos costumes. Drásticas decisões, nas tentativas dele para estancar o máximo possível dos lamentos dela.
Nunca mais os vimos. Mudamos de endereço. As histórias da Particular João Rocha ficaram para trás. Novas ruas, novos vizinhos... Lamentos? Alguns, por que ninguém é de ferro. Dona Marina? Soubemos, foi abandonada pelo “seu” Maurício de tanto se lamentar dele. Drástica decisão. A derradeira tentativa para estancar definitivamente os lamentos da lamentosa Dona Marina.
Dizem que “seu” Maurício, depois de muito tempo, tinha apenas um lamento a fazer: não ter tomado essa drástica decisão quando Dona Marina lamentou-se do hotel da sua lua de mel. Da cama com colchão de mola. E até da performance do pobre “seu” Maurício, naquele hotel, sobre aquele colchão de molas.
Ai! Ui! Meus dedos estão doloridos de tanto escrever neste teclado... Cuidado, isso pega!

Lamentar é uma prerrogativa humana. Serve para descarregar um pouco os infortúnios nos ouvidos de quem ouve. Entretanto, é preciso compreender que o lamento, os queixumes, nem sempre são eficientes para o alívio. As pessoas que nos cercam, por mais íntimas, por mais próximas, não devem ser encaradas como cúmplices nas nossas desgraças, ou parceiras na nossa má sorte. Além disso, invariavelmente não têm poderes para consertar o que temos de errado. Como líderes do nosso próprio destino, devemos encarar nossos problemas de frente, enfrentá-los para buscar as soluções mais viáveis. A grande maioria das soluções está em nossas próprias mãos.

Roberto Villani

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