GESTOS PERIGOSOS

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

A DENTADURA DO JACINTO


Todo dia é dia de rotina. Uns dias mais, outros menos. Mas é! Até que, por alguma razão inesperada, suprema, a coisa mude. E a rotina de antes é substituída pela rotina de então.
Todos os dias de aula, a rotina era sempre a mesma. Vassouras e rodos em ação. Água, detergentes, produtos de limpeza perfumados... A família superava-se a serviço da higiene. A casa tinha que ficar impecável. Digna de elogios. Afinal, à noite, era invadida por visitantes ilustres: os alunos.
Rua Joaquim Nabuco, 20, lá em Santos. 1977. Aluguei a casa, um sobrado, para ter minha própria sala de aula. Ali, ministrei aulas de teatro, de oratória, de dramática autógena... De criatividade redacional... A parte de baixo do sobrado fora reservada à escola. Minha residência ocupava a parte superior. Único cômodo em comum, a cozinha, que nos servia para preparar nosso alimento e para comercializar, durante as aulas, sanduíches, chocolates, refrigerantes, enfim, guloseimas em geral; a cozinha servia também de cantina.
A sala de visitas, transformada em sala de aula, circundada por bancos de madeira encostados nas paredes. Os alunos acomodavam-se nas quatro laterais, nos bancos mencionados. O espaço, na realidade pequeno, fazia-se suficiente para os exercícios e aproximação de cada um. Aconchegante. Ambiente gostoso. O calor humano acalentava os sonhos que cada um oferecia ao todo. Estavam próximos, juntos, misturados às graças, às ações tímidas, aos gracejos, ao carinho... A desvantagem do tamanho gerava a vantagem da verdade, da solidariedade, da união. Pareciam irmãos, em qualquer turma. Os pequeninos, os jovens, os adultos...
No ano mencionado, iniciei um curso de dramática autógena para integrantes do Comissariado de Menores de Santos. A pedido do então Juiz de Menores Dr. Clineu de Melo Almada. O objetivo buscava desinibição, prática da fala em público e outros requisitos essenciais à função de cada um. A dramática autógena engloba tudo isso: dramatização, oratória, argumentação, criatividade redacional... O curso tinha o tempo de seis meses, o bastante para os resultados buscados.
Uma turma formada somente por homens. Em princípio. Ruim para as práticas da dramática autógena. Para contornar, convidamos algumas mulheres. Lembro-me bem de algumas delas: Maria José, Maria Helena, minhas filhas Rosane e Rosângela, Cecília... Entre eles, o Amilcar, o Luiz Borim (o mais novo), o Pedro, o Pedrão, o Jacinto (o mais velho)... Ao todo, dezoito pessoas compunham o grupo.
Chegavam quase todos juntos, envolvidos numa alegria juvenil invejável. Adolescência resgatada para poucas horas de alegria. Valia a pena. Cumprimentavam-se, abraçavam-se. Sorriam... Inesquecível. Memoráveis momentos de franco viver. Rotina de todo reencontro na porta de minha casa.
Muitos dos temas colocados em discussão e prática durante as aulas desse grupo constituíam-se dos problemas que enfrentavam no Comissariado de Menores. Delinqüência infanto-juvenil. Uso de drogas, alcoolismo, furtos, agressões... Pode parecer algo austero, pesado, até constrangedor. Mas cuidávamos de estabelecer rotinas para suavizar as abordagens desses assuntos. No fim, as aulas transcorriam saudáveis do ponto de vista psicológico. Afinal, não era nossa intenção levar para a sala de aula os horrores dos desajustes de crianças e de jovens. Tudo era proposto de forma democrática, com a opinião de cada um e, assim, com seriedade, os exercícios eram resolvidos.
Numa dessas aulas, a dramatização fez-se necessária para a representação da visita de dois comissários à casa de um adolescente. E lá estava o velho e inesquecível Jacinto, acompanhado do Felipe, a “bater na porta da tal casa”. No imaginário, é claro. Um faz-de-conta. Para que se situe quem lê, ambos estavam de frente para alguns sentados no banco encostado na parede. O Jacinto bem à frente da Maria Helena e o Felipe diante do Pedrão. O Jacinto batera palmas algumas vezes e nada de ser atendido (fazia parte da encenação). O Felipe, num rápido movimento, bateu nas costas do Jacinto, exclamando:
- Bate mais forte, Jacinto! – a tapa foi tão forte que a dentadura do velho Jacinto voou para baixo do banco onde a Maria Helena estava sentada. Ato contínuo, o Jacinto, atabalhoado, confuso, mergulhou para apanhar sua dentadura e, erro de percurso, encaixou sua cabeça entre as coxas da Maria Helena. Esta, em choque, apertou as pernas o que piorou a situação. Todos perplexos diante de cena tão grotesca. Silêncio absoluto. Num esforço sobre-humano, o Jacinto desvencilhou-se das pernas da moça, apanhou sua dentadura e colocou-a na boca em segundos. Depois, pôs-se de pé, recompôs-se, roupas, cabelos... Olhar panorâmico. Suspirou fundo e exclamou:
- Eta muié perfumosa, essa Maria Helena!
Rompeu-se o silêncio. Explosão geral de gargalhadas. Ninguém continha o riso. Não conseguiam parar de rir. Não dava mais para continuar. Encerrei a aula por ali mesmo. E a rotina de final de aula foi alterada. Por uma razão inesperada, suprema. Que fazer, não é?

Um comentário:

  1. Roberto Vilani

    Tenho acompanhasdo suas atividades no computador do meu neto. Meus parabenes meu amigo.


    Tenho muitas saudades de voce

    Hyjalmar Rubo

    leandro_rubo@yahoo.com.br contato

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